Amanda
Os funcionários abaixam as portas. Ela sente o escuro penetrar-lhe. Ela sabe que vai ser esquecida. Ela sempre foi esquecida. Mas ao pegar o ônibus lotado, delira-se em sua imaginação criativa. Em devaneios, refugia-se de seu crônico desespero.
De dia, ela emana uma claridade falsa de si mesma. Pela sua alma, disputam-se anjos caídos e demônios revoltados. Todos querem sua sanidade. Ela se agarra a deus. Mas deus não se importa. Na verdade, ela sabe que ele não existe, mas gosta da ideia de crer nele para sua subsistência psicológica.
Quando se abaixam as portas da loja, os demônios se libertam das grades em que ela os aprisionou durante a claridade. Os anjos caídos prostram-se em sua infinita dor. Em festa e rebelião, ganham os pensamentos dela. Ela perde para eles. Todos os dias.
18 horas.
Hora de fechar os olhos e ir pra casa. Na verdade, é hora de tampar os ouvidos para não enlouquecer. Ela acredita na sua sanidade. Tem fé. Sempre soube que na realidade, há outra realidade. Ela nunca diz isso. Guarda este sonho em segredo. Na realidade, todos escondem suas verdades. Ela não deixa de se alucinar também.
A loucura coletiva é imperadora.
Quem se importa demais, sofre demasiadamente.
Ela não precisa carregar mais pedras.
De tanto tentar controlar as vozes de seus demônios, ela decidiu frequentar uma igreja. Adorou a ideia de ter luz do filho de deus todos os dias em sua estrada para a vida. Melhor ainda é ter o conforto do espírito santo em seus momentos de angústia. A vida agora parece brilhar.
Na igreja, pediram que ela perdoasse os seus pais. Eles tocaram o pandemônio sem perguntar se podiam. Ela chorou. Chorou como uma criança que havia acabado de perder seus genitores. Como perdoar aqueles que a abandonaram ainda quando era um bebê?
Jesus te perdoou querida. Quem é você para negar-lhes o perdão?
Ela fingiu ser uma boa garota. O que tem sido desde que percebeu que o lar que morava era o lar de todas as crianças rejeitadas por seus pais. Ela tinha medo de ser abandonada pelas assistentes sociais a qualquer hora. Quando uma família aparecia para adoção, sabia que logo, logo ela estaria de volta. Quem quer uma garota rejeitada?
Você tem um sorriso lindo, sorria. Disse certa vez, uma mulher que queria conhecê-la. Ela nunca sorria. E dessa vez também não tentou sorrir. O mundo teria que lhe dar muitos motivos para voltar a sorrir de novo. Ela não tem nenhuma lembrança disto. Sorrir é algo de propaganda, ela sempre pensou. Na verdade estão todos infelizes trocando mentiras entre si porque é feio destoar da maioria. É feio falar a verdade.
Ela também não é simpática.
Ela ouve todos os colegas pegarem suas bolsas, mochilas e marmitas para se aprontarem para ir pra casa. Dói no corte mais profundo ouvir estes sons. Os cadeados sendo trancados, as pessoas dizendo o que vão fazer quando chegar em casa.
Vai fazer pudim pro maridão? Oh, mas o seu bebê ele está tão lindo!
Eu vou passar no trampo da minha namorada hoje para irmos ao cinema. E você? Quer uma carona?
Ela ouve silenciosamente. Ninguém se lembra dela. Ninguém a convida para nada. O coração nessas horas bate de forma desesperada. Pensa que vai ter um ataque de pânico, mas sempre pede a deus para parar com essa doideira. A fé acalma os batimentos por um momento e num outro, ela já se esquece de esquecer que ninguém está interessado no que ela vai fazer quando chegar em casa.
Tchau, Amanda! Até amanhã!
Tchau, Amanda! Beijos!
Tchau!
Tchau.
Ela fala para si mesma.
Há anos fala sozinha para si mesma. Mas não quer acreditar nas pessoas. Amanda só acredita em deus, em seu filho e no espírito santo dele. Em mais ninguém, ela sempre diz isto. As suas colegas de trabalho se assustam. Ela parece fria. E talvez ela esteja tentando dizer o contrário. Mas as pessoas não são ensinadas a compreender o outro. São ensinadas a julgar e condenar e em última instância, excluir.
Amanda exclui as pessoas de suas vidas. O tempo todo.
As pessoas sentem que é impossível se aproximar dela.
Ela gosta de manter este ar frio porque essa postura causa respeito no ambiente de trabalho.
Amanda nunca recebeu um abraço de um colega ou de um amigo em seu aniversário.
Amanda é virgem e sonha em se casar de véu e grinalda.
Amanda delira e em seu delírio, se mata.