All Star #31
Acho que, se a Bíblia estiver certa, ninguém que morreu com mais de 18 foi para o céu. Tudo que pode se fazer de errado já se fez até os dezoito anos. Milhares de punhetas, centenas de chingamentos, pensamentos sacanas com a mulher do próximo, gula, avareza, mentira, não tem alma que dure até os 18. Tudo indica que eu tenha assinado a minha passagem quando roubei uma caneta da papelaria da escola, com uns nove anos. De lá para cá venho apostando na teoria do arrependimento, e colecionando pecados. Por isso acho que Deus me pune com a Júlia. Sou um covarde e ela sabe. É tipo um blues do Charlie Park depois da meia noite, com uns goles de wiskey barato. Ou o Leonard Coen tocando Wanderwall. Dói de verdade. Não quero parecer um idiota, mas é difícil evitar. Vou procurar o que fazer na loja de CD do Dé para fugir de qualquer tipo de pensamento. No caminho encontrei a Paula voltando da escola. “Porque você não foi na aula hoje?” “Sei lá, fiquei no computador até altas horas ontem e não acordei no clima. Perdi alguma coisa?” “Não. Eu, a Júlia e a Alina queríamos ir na sua casa fumar um e escutar um som hoje a tarde.” “A hora que vocês quiserem.” “Umas três e pouco?” “Fechado.”
Queria ter um novidade, alguma coisa legal para contar para elas. Parei na Curva de Rio Discos já com a ideia de levar alguma coisa do Strokes. Era uma batida legal, um som que as meninas iam gostar, e eu não tinha nenhum álbum deles ainda. Resolvi não perder muito tempo na loja, só peguei o CD e voltei para casa para começar a bolar os baseados. Liguei a nova trilha sonora, coloquei Beleza Americana no mudo na TV e sentei na escrivaninha para trabalhar. “Sou só um cara comum que não tem nada a perder.” Adoro quando o Lester fala isso para aquele chefe dele com cara de almofadinha de Harvard. Quero falar isso para um chefe cretino destes um dia. Ou para um professor idiota que acha que sabe tudo da vida. E entre esse pensamento de glórias e uma empolgação homérica em Last Night a Paula e a Júlia gritam no portão. “Nossa, você tem o Is this it??” Foi a primeira coisa que a Júlia disse quando entrou no quarto e escutou a música. “Peguei hoje no Dé, sabia que você ia curtir.” Me sentia como se tivesse passado no vestibular de medicina. “Vi um clipe deles na MTV ontem que nunca tinha visto. Tem umas imagens de Nova York muito legais.” “Não vi esse ainda.” “Posso colocar o refri na geladeira e acender um baseado?” A Alina sempre era mais objetiva.
A Paula chegou e pediu para tirar o filme porque ela ainda não tinha assistido inteiro e queria ver depois. Coloquei Os Bons Companheiros para ver se dava um pouco de ação à tarde. “Aí, não gosto de filme de violência.” A Júlia reclamou antes da primeira facada do Henry no corpo do porta malas. Naquele momento desejei nunca ter tido aquela fita. Como a Alina estava lá o Enrolado também apareceu. Com dois baseados acesos e todas as mídias operando o mundo parecia que estava aos nossos pés. “Será que a gente vai viver para ver a maconha legalizada?” A Paula falava sobre erva com uma notável paixão. “Acho que sim. É uma planta, nunca vão acabar com uma planta. Ela se multiplica por força da natureza.” A Júlia as vezes parecia que tinha vocação para natureba, mas a Coca-Cola não deixava. “Vamos fazer um bolonha?” “Aqui não dá, não vou ter como explicar pro meu Vô o ingrediente verde. Mas apoio a ideia.” “Vamos falar com a Tati e fazer no forno a lenha do sitio dela no fim de semana.” “Vamos!” “Vamos!” “Vamos!” “Sim!” Moção apoiada por unanimidade efusiva.
Escutar 1979 com a galera fazia tudo ser mais legal, então troquei os Strokes por Smashing Pumpkins entre a ideia do bolonha e as discussões sobre as aulas de matemática. Descobrimos aí um ponto de tensão entre a Alina e o Enrolado. “A aula do cara é um saco. Ele não tem a mínima didática. Ele não esta falando com robôs. O cara não dá um sorriso, não faz uma piada”, dizia ele. “Eu entendo muito bem matemática por causa dele. Se você é burro não bota a culpa nele”, e ela estava disposta a iniciar uma guerra por Pitágoras. “Sei lá, a aula dele faz eu me sentir burra. A didática dele comigo não funciona.” A Paula queria jogar gasolina na fogueira. “Tem gente que se da bem com exatas, uns com humanas. Pelo menos ele não enche o saco como o Tadeu de Português que acha que é o centro do mundo.” Tentei dar uma aliviada, e quando a Júlia concordou comigo foi como se a gente fosse tão parecido que era evidente que tínhamos sido feitos um para o outro.
A filme acabou, o baseado também, e humanidade continuava sem perceber a existência daquele universo paralelo que a gente construía no quarto. “Eu só queria viver sem que ninguém se preocupasse comigo.” Falei isso sem pensar que eu queria que a Júlia se preocupasse comigo. Quando pensei isso me senti um verdadeiro idiota. Eu não era diferente do professor de matemática cretino que queria atenção. O CD terminou e não troquei a música. Fiquei jogado no canto da cama com cara de paisagem tentando atrair a Júlia por piedade. Fechei o olho e desejei com toda força que tinha que todo mundo desaparecesse e só sobrasse eu e ela. Acabei caindo no sono quando eles falavam alguma coisa sobre uma balada no sábado. Acordei sozinho não sei quanto tempo depois que eles saíram.