Jujubas vermelhas e amarelas
... uns quarenta anos. Entrara na crise dos “enta”. Ainda não compreendera o peso do tempo. Sentia-se um homem muito jovem, eternamente jovem. E é bem verdade que ele o era mesmo. Espírito indagador, contestador, vigoroso. Os quarenta anos não se fazia presentes em momentos felizes. Porém, quando a vida não estava como desejara, o que era nos últimos anos uma constante, os vincos e as pequenas marcas de seu rosto se fortaleciam como nunca. O ar pesado das preocupações dava-lhe, à revelia, um envelhecimento de um dia para o outro.
Pensara na vida sempre. Todo o sempre. Incessantemente. Demais. Até agora, nesse momento, certamente, deva estar. Cultivara a cabeça sempre em frenética ebulição, mesmo quando dormia. O corpo padecia após uma noite mal dormida, com a insônia de uma busca de soluções para problemas do dia seguinte, soluções para uma vida melhor ou até mesmo para o nada.
Esperava, como todos os dias, o ônibus depois de um dia inteiro de trabalho. O velho automóvel ficara no concerto e há dias o mecânico prometera entregá-lo.Velha e costumeira promessa de mecânico. Era final de mês, motivo suficiente para ele não poder nem pegar um táxi e chegar mais confortavelmente em casa. O dinheiro tornara-se escasso, muito escasso.
Vendia planos de saúde. Recebia um salário bem medíocre, além disso, as comissões por planos de saúde vendidos eram irrisórias, ou como bem falava, vergonhosas. Há muito que as vendas caíram. Não que o país tivesse menos doentes, obviamente, o problema eram os preços exorbitantes impostos à população pelas empresas.
No intuito de voltar para casa, permanecera, de fato, estaticamente na parada de ônibus por longos minutos. Segurava sua pasta, tipo executivo e o cansaço da alma. Como possuía uma mente dominada pela inquietude, prestara atenção a tudo e a todos na parada de ônibus. Motivos para vãs filosofias. As bundas das adolescentes que saíam dos colégios e que ele observava com gulodice e com a certeza de que o tempo não as seguraria tão firmes. A velha senhora cheia de sacolas nas mãos que lembrara, por um momento a solidão de sua mãe e as tantas sacolas carregadas por ela, sozinha, toda a vida. O vendedor de balas, no ponto de ônibus, que vendia uns poucos doces de aspectos envelhecidos em sua banca improvisada. Balas, chicletes e gomas meladas, derretidas pelo sol de dias a fio.
E nada da condução chegar.
(...)
Cansaço. Fome. Banho.
Neste momento se sentira o homem mais pobre do mundo . Um perdedor diante dos carros que passavam em alta velocidade pela cidade hostil e que nem se davam conta das paradas apinhadas de trabalhadores, estudantes e senhoras com sacolas.
Enfim, o transporte: 456. Chegara mais lotado que nos outros dias. Não dera para esperar outro. Tinha pressa de chegar em casa e lavar-se da fadiga do dia. Afinal, a empresa obrigara os funcionários a trabalharem com camisas de mangas compridas e gravata, apesar do sol cáustico da cidade. Os refrigeradores de ar do escritório permaneciam desligados meio expediente por contenção de despesas. Pouco lucro, mais calor. Tronco moderno, chibata sutil. Por esse motivo, nada insignificante, estava sempre às bicas e vez por outra a murrinha tentava se aproximar.
Depois do empurra-empurra, entrara na lotação e se pusera em pé diante de uma cadeira em que um dos passageiros dera sinal para descer. Pensara em ser um homem de sorte por isso. Pela primeira vez conseguira sentar na lotação, sempre com grande quantidade de pessoas. A tendência era o ônibus esvaziar, mas sempre perto de sua casa, quando sentar, mesmo que por alguns minutos não já significava muita coisa.
Quando o ônibus começara a esvaziar, entra um rapaz, deficiente visual, vendendo jujubas. Oferece-as a todos os passageiros. Alguns compraram, outros não deram a mínima importância para o lamento do jovem: “Uma por cinqüenta centavos para me ajudar”. Ele também, inicialmente, não lhe dera a menor importância também. Afinal, jujuba era da época em que ele comia doces com a gula infantil. Mas o rapaz, o vendedor, insistira tanto, fizera um discurso tão penoso que ele não tivera mais como recusar. Comprara com uma moeda solta no bolso, troco da passagem. O jovem agradecera com algumas preces feitas às pressas: “Deus te acompanhe e te de saúde!”.Ele agradecera a prece com um gesto cansado de cabeça. O cego descera no primeiro ponto após a venda, sob protestos do motorista impaciente, que não suportara mais parar o ônibus para que as dúzias de pequenos comerciantes e pedintes subissem e descessem durante todo o dia.
Passara a partir daí a prestar atenção no pacote de jujubas. Inquietude mental eterna. Umas pareciam ser mais saborosas que outras. Gostava das jujubas vermelhas, das laranjas e das roxas. Tempos de criança. Não suportava as amarelas, sempre tão cítricas, e as brancas com gosto de nada, como costumava dizer.
No pacote cilíndrico e bem apertado por um plástico transparente estavam de um lado as mais saborosas, do outro, as menos saborosas. Pensara que talvez tivessem sido embaladas, assim, propositadamente. Mas não era possível! Tudo muito meticuloso para uma grande fábrica de doces. E qual a intenção teria o fabricante de deixar tão óbvio que umas eram mais saborosas que outras? Não era possível.
Naquele instante, diante de tal constatação, afligiu-se com uma grande dúvida . Começaria a comê-las por onde? Por qual lado? Pelas piores? Pelas melhores? Pensara em todas as possibilidades. Caso resolvesse começar pelas amarelas e brancas, as menos saborosas, se deleitaria depois com as preferidas.
Caso começasse pelas favoritas, o amargor de um dia exaustivo seria prontamente abrandado pelo doce e quando fosse comer as cítricas já estaria vitalizado pelo prazer. Passaram-se paisagens, entraram e saíram pessoas do ônibus e ele não resolvera como fazer. Gesto tão simples. Que sujeito mais complicado! Sinto-me impaciente com esta dúvida sem sentido. Irrelevante para tantos outros problemas que ele tem a resolver.
Olhava o pacote com uma dúvida bem comum a tudo que fizera até então. Começar pelo prazer ou pelo desprazer? Não chegara a nenhuma conclusão. Aliás, a partir daí passou a pensar em todas as escolhas que tivera feito até então na vida. Muitas vezes, começara pelas jujubas vermelhas e outras vezes tivera começado pelas amarelas. Quer exemplos? Jujuba vermelha: quando decidira separar-se da mulher e voltar a morar com mãe. Espantado? É verdade. Essa escolha era daquelas bem vermelhinhas e perfumadas com aromatizantes deliciosamente artificiais. Sua mulher fora um tipo fútil que a tudo exigira e pouco dera em troca. Nem carinho, nem nada.
Assim, voltar ao lar materno com os carinhos de berço sempre presentes, a comida sempre pronta e os olhares compreensivos de sua mãe ao seu destino, era um grande exemplo de opção pelo prazer. Jujuba vermelha. Mas, a solidão com a morte da mãe fora como se empanturrar de jujubas amarelas, depois brancas, depois verdes, depois...
Jujubas amarelas? A escolha da profissão. Fizera a faculdade de Administração de Empresas na esperança de se tornar um administrador de uma grande empresa, quem sabe uma multinacional, mas percebera com o tempo que os colegas de faculdade que estavam de vento em popa na carreira, herdaram as empresas de suas ricas famílias e nem tiveram sido, a grande maioria, bons alunos, como ele o fora. E a ele, o que restara? Alguns empregos no comércio, como vendedor. Ora de carros, ora de peças para automóveis, ora de máquinas industriais e agora, planos de saúde. Grande pacote de jujubas amarelas, bem cítricas.
Agora, leitor paciente e persistente, entendo melhor o pacote de jujubas. Precipitei-me ao julgar-lhe: Jujuba é problema existencial.
Ao lembrar-se de todas as escolhas da vida, de todas as cores, fora ficando sem vontade de abrir o pacote. Estava muito cansado, perdera a fome até, e além do mais, comer um pacote de doces naquela idade já não era tão saudável. Pensara na idade.
O ônibus já estava bem perto de sua parada. Com as jujubas na mão esquerda, bem apertadas, e sua pasta de executivo na outra, dera sinal para que o ônibus parasse. Descera agradecendo a corrida ao motorista e desejando-lhe uma boa noite.
Ao descer, um menino pede-lhe uma ajudinha pelo amor de deus. Sem ter dinheiro na carteira ou em mãos, entrega-lhe o pacote de jujubas. O menino feliz, não se fez de rogado. Chamara o irmão e dividira ao meio o pacote, de um lado as mais saborosas e do outro as menos. Entregara alienadamente ao irmão. Estes saíram felizes com os doces nas mãos sem saberem ainda, sobre escolhas.