Clodine e o Amante
Clodine largou de qualquer jeito sobre a mesa da sala o celular, após a conversa que acabara de ter com Leonardo. Ao ver na parede atrás de si que já muito passava das 13 horas, lembrou-se do compromisso. Certamente se atrasaria para o encontro com Sergio, o amante. O banho foi rápido; a maquiagem também não passou de um leve batom rosado para destacar a beleza dos grossos lábios e uma sombra para os olhos que choraram na noite anterior.
- O que quer agora, porque não me deixa em paz? - disse ao atender ao chamado.
- Não, enquanto não disser com quem está saindo.
- Vá para o inferno! Não estou saindo com ninguém.
- Espero mesmo que não. Não sabe do que eu seria capaz se a pegasse com outro homem.
Há alguns quarteirões dali, em seu Mitsubishi, Sergio a esperava impaciente. O local não era propício para o estacionamento. Pedestres precisavam se espremer entre o veículo, que tomava quase toda a calçada e o muro da residência oposta. Clodine caminhava a passos acelerados; olhar fixo no chão. Ia pensativa. Era o momento de decidir entre as ameaças de Leonardo, seu tratamento monstruoso, sua violência e sua frieza amorosa e a paixão arrebatadora que vinha sentindo por Sergio. Atravessava os cruzamentos alheia aos sinais luminosos. Seu corpo estava ali, mas seu espírito se via alucinado por esta fase crucial em sua vida.
Sergio já estava impaciente com a demora. Saiu do carro. Encostou-se à porta e acendeu um cigarro para aguentar a espera. Sabia que era arriscado aquele romance, mas continuava assim mesmo. Clodine era a mulher com quem sempre sonhou e não ia perder essa chance de ser feliz de verdade, já que também viera de um relacionamento de pura frustração.
- Poxa! Porque demorou tanto? - disse Sergio, abrindo para ela a porta do carro.
- Ele está me perturbando ao telefone. Desconfia que tenho um amante. O que vamos fazer?
- Nada. Simplesmente nada. Não se preocupe; vivamos o nosso amor sem medo e sem culpa.
- É muito fácil falar; estou apavorada. Ele acaba de me ameaçar. Me desculpe, mas estou confusa.
Venha, vamos nos distrair. Depois de uma conversa e de uma boa dose de vinho vai se sentir melhor. - Dizendo isto, entrou com ela no carro e saíram em disparada.
Passaram o resto daquele dia entregues ao amor que sentiam um pelo outro, esquecidos do mundo fora dos seus interesses. Sergio não permitiu que Clodine se deixasse levar por outro sentimento além de um querer puro e desataviado. Ele sabia o quanto seria amado se se entregasse de corpo e alma. Não importam os riscos de uma paixão pura e sincera. Ele conhecia tão pouco aquela mulher! Mas isto não tinha a importância dos seus sentimentos. O que representava uma situação arriscada diante da verdade de uma relação? Estava convicto de que era uma relação marcada para a eternidade.
As horas voaram como aves que migram em busca de refeição. Aquele primeiro encontro consagrou a união. Não se amaram, todavia. Queriam se conhecer. O que poderia ser mais importante? O almoço regado a vinho. O pudim de leite como sobremesa; o passeio de carro pela orla da praia e a ida ao shopping center. O casal, de mãos dadas, ao caminhar entre as galerias e lojas convidativas terminou aquele dia numa das salas de projeção para esquecerem de si na contemplação de um filme cômico que os fez rir e sentirem-se o mais feliz casal do mundo. Em seguida veio a praça de alimentação para a pizza e o sorvete. Sergio deixou-a no mesmo local que a havia pego. Na volta para casa aqueles mesmos pensamentos voltaram a incomodar Clodine. Custou a conciliar o sono e, quando dormiu, finalmente experimentou uma das noites mais agitadas que já tivera.
Durante toda a manhã do dia seguinte, Clodine manteve desligado o seu aparelho celular para não ter que falar com Leonardo. Desde que haviam discutido ferozmente dias atrás ela o expulsara de casa com o argumento de que já não mais suportava o sofrimento de conviver ao lado de um homem violento e possessivo. Teve que recorrer ao auxílio judicial para mantê-lo afastado. Leonardo foi, mas jurou que voltaria e que ela jamais seria feliz ao lado de outro homem.
As horas se passaram, levando aquela manhã e conduzindo Clodine em direção à porta. Soara a campainha. Tensa e preocupada, gira a maçaneta, colocando diante de si aquele homem.
- o que quer vindo aqui. Como se atreve?
Leonardo, impassível, diante da figura atônita de Clodine, estende a mão e evita que a porta se feche, impedindo sua entrada.
- Vim como amigo. Por favor, deixe-me entrar.
- Não! Não! Vá embora. Desapareça da minha vida.
Leonardo via, no olhar afogueado de Clodine, em sua voz tonitruante com
Mas ela estava decidida a não mais ter nada com aquele homem.
- É exatamente sobre isto que quero falar.
- Como assim?! - perguntou Clodine, sem entender.
- Eu explico. Vamos, deixe-me entrar.
Ainda muito confusa e desconfiada, largou a porta e se dirigiu para o centro da sala. Leonardo entrou e seguiu-a até o sofá. Sentou-se ao seu lado; foi o primeiro a falar.
- Não tenho o direito de impedir sua felicidade. Por isso, deixo-a livre para seguir o caminho que achar melhor; se é isto o que quer.
- sim, é o que quero. Desculpe-me.
- Não, você não tem que se desculpar. Fui o culpado de tudo.
- Obrigada! Não sei o que dizer.
- Deseje-me felicidade.
Foram as últimas palavras de Leonardo. Parecia tomado por uma transformação incompreensível. Não se sabe o que ocorreu naqueles dias de afastamento, mas é certo que algo ocorreu. Desapareceu porta afora, deixando Clodine abismada com aquela atitude providencial. Ela se estirou para trás, deixando pender a cabeça sobre o encosto do sofá. Pronunciou baixinho, quase inaudível, do fundo do coração, o que queria para si e para o seu ex marido à partir daquele dia: felicidade.