DEPOIS DAQUELA TARDE*
-Tio, preciso conversar com o senhor.
-Pode falar Humberto. Mas para com essa estória de senhor, que Senhor está no céu.
-Eu queria que você falasse com minha mãe. Ela quer me proibir de ir ver os jogos do Palmeiras no estádio.
-Como você quer que eu faça isso. Eu concordo com ela.
-Mas como tio? Você mesmo diz que na minha idade ia todo final de semana.
-Ia mesmo. Participava de organizada. Fui até viajar. Maracanã, Mineirão, Arena da Baixada. Vila Belmiro do meu Peixe então? Perdi a conta.
-Então porque você acha que não devo ir?
-Porque vocês jovens acreditam que só porque nós fizemos besteira podem fazer também. Eu quase morri várias vezes nesta obsessão. Hoje até está calmo. Mas na minha época nós íamos para brigar mesmo. Já lançaram rojão em mim, já lancei rojão nos outros. Já joguei pedras na polícia, já tive que sair correndo no meio de uma favela no Rio porque nosso ônibus foi cercado por vascaínos, já tive que me esconder em um banheiro no Anhangabaú porque atirei um pedaço de pau no olho de um cavalo e o policial queria me matar. Era um uso de drogas sem fim. A primeira vez que vi alguém usando crack foi em um ônibus que a prefeitura de São Paulo cedia para as torcidas irem para o Morumbi.
-Mas hoje não tem nada disso, tio. A gente só vai para o estádio e vê o jogo.
-Ah, mas que sem graça! Porque você quer tanto ir, então? Brincadeira. Não é só isso Humberto. Nada contra torcer. Mesmo não indo mais nos estádios eu me esgano na frente da TV sempre que o Santos joga. Sei a escalação ideal e o estado de todos os jogadores. Só que a coisa toda vicia. Há coisas melhores para fazer com suas tardes de final de semana ou com suas noites de quarta-feira.
-Se vicia tanto como foi que parou de ir? Responde agora.
-Você está ficando muito espertinho moleque. A resposta é que eu fui liberto. No dia quinze de dezembro de dois mil e dois!
-E como foi essa libertação?
-Recebi o que eu mais queria.
-Simples assim?
-Simples? Você não tem noção! Estávamos 18 anos sem ganhar nada! Com incríveis bolas na trave. Coisas assim inacreditáveis. Em 1995 tínhamos perdido de quatro a um em plena Vila Belmiro. No Maracanã no primeiro tempo já perdíamos de um a zero. O time não voltou para o vestiário. Nós, pequenininhos, no meio daquela gritaria daquele lugar majestoso lotado. Todos cantando a vitória. E nós vemos o time no meio daquele alvoroço não voltar para o vestiário. Ficaram de mãos dadas no meio do campo. O segundo tempo começa e nós presenciamos um verdadeiro milagre. Um gol atrás do outro. Era impressionante, não conseguíamos acreditar. 5 a 2, Humberto! 5 a 2! Éramos em menos de 200 no meio de mais de cinquenta mil. Mas pulávamos e cantávamos que nem alucinados. De repente o impossível aconteceu. O Maracanã inteiro começou a aplaudir. A aplaudir! No ônibus de volta durante seis horas ninguém conseguia falar nada. Só chorávamos e cantávamos. Nós sabíamos que seriamos campeões aquele ano. E perdemos a final para o Botafogo.
-O Santos ficou tanto tempo assim sem ganhar nada?
-Todos os times paulistas já ficaram. O São Paulo ficou 13 anos e já foi rebaixado do Estadual. O Corinthians ficou 21. Seu Palmeiras ficou 17. Inclusive nosso estado tem a torcida mais fiel do mundo.
-Qual tio?
-A da Ponte Preta. Foi fundada em 1900 e até hoje nunca ganhou porra nenhuma. O lema deles é: meu bisavô não viu, meu avô não viu, meu pai não viu. Mas eu vou ver a Macaca campeã!
-Hahaha! Você não existe tio. Mas o que aconteceu em 2002 que te mudou?
-Juventude sem cultura. Uma das maiores finais de Campeonato Brasileiro de todos os tempos! Santos e Corinthians no Morumbi. Setenta mil pessoas. Metade de branco! Metade santista! Juro para você sobrinho, o Maracanã e o Mineirão cabem mais gente, mas o estádio do São Paulo é tão mal feito que dá a impressão de ser absolutamente gigantesco. Parece que se está a centenas de metros do campo. E naquelas arquibancadas enormes aquela massa negra nos encarava. Mas pela primeira vez éramos iguais. Absolutamente iguais. Pode existir 20 corintianos para cada santista. Mas ali, naquele momento? Nossa!
-Pô tio, isso é complexo de inferioridade.
-Fazer o que? Nesse negócio de torcida a gente tem mesmo. Mas na época era pior porque parecíamos condenados a nunca mais ganhar nada. De repente aparece um time que tinha Robinho, Elano, Diego, Alex, Léo. O time não jogava, voava. Você viu Neymar. Eu te digo que o Robinho era mais impressionante. Ele entortava os beques. Era como se Garrincha tivesse reencarnado. Naquela tarde aos quarenta minutos estava dois a um para o Corinthians. Como tinha sido 2 a 0 na Vila nós seriamos campeões com aquele placar. Mas ninguém conseguia comemorar. O Diego, nosso camisa 10, saiu carregado. O Fábio Costa fazia uma defesa milagrosa atrás da outra. Era como se o gol deles fosse iminente. Nós olhávamos uns para os outros e víamos que todos pensávamos o mesmo: Alguma coisa ia acontecer para estragar tudo de novo! De repente Robinho arranca , dá um drible impressionante, vai para a linha de fundo e cruza para o Elano encher o pé. Meu Deus! Éramos campeões! Aconteceu! Era uma loucura! Todo mundo se abraçava, chorava, gritava, se ajoelhava com as mãos para os céus. Eu comecei a pular de arquibancada em arquibancada. Da primeira a última, completamente ensandecido. Nesta loucura nem percebi que no último minuto o Santos fez mais um.
-Caramba tio! Que dá hora!
-Uma hora, completamente extenuado, eu deitei no chão de cimento e só sentia a arquibancada. Ela se mexia como uma onda de tanto que as pessoas ainda pulavam. Uma paz imensa me invadiu. Daí, naquela loucura, eu me perguntei: E daí? Tudo aquilo perdeu completamente o sentido. Eu me levantei e olhei para a outra parte da arquibancada, quase vazia. E tive dó da outra torcida. As coisas continuavam iguais mas eu não era mais o mesmo. Saí dali e fui para casa. Os santistas tomaram a Paulista. Eu dormi. Nunca mais fui em um estádio.
-Mas porque tio?
-Porque nunca mais viveria algo parecido. Seria inútil continuar procurando. E que aquilo não tinha importância...
-Como não tinha importância tio?
-Você sabia que seu Palmeiras é o primeiro campeão mundial de clubes? Venceu a Juventus da Itália em um Maracanã com mais de 100 mil pessoas em 1958. Quantas vezes você comemorou isso? Eu só te digo isso, sobrinho. Nunca fui tão feliz como naquele momento. Mas depois daquela tarde não mais busquei falsas felicidades.