O Que Comemos

Eu cultivava produtos livres de agrotóxicos, o que chamam hoje agricultura natural ou cultivo orgânico. A verdade é que me sentia feliz fazendo isso; fora a missão dada a mim por Deus e eu a abraçara com entusiasmo. Só que tive que enfrenar descontentamento por parte de alguns dos que ainda utilizam o modo convencional. Tudo por causa da ganância de continuar obtendo seus ganhos, mesmo em detrimento da saúde dos que se importam em manter uma forma de se alimentar inteligente. Desconheço se o leitor tem por preferência a ingestão de produtos livres das pragas que infestam as lavouras ou se continua a comer veneno. Desculpe a minha franqueza, mas já é prova inconteste o mal causado por um hábito alimentar incorreto, visto que acredito no ditado: somos aquilo que comemos. Logo, se ainda paira alguma dúvida no coração do leitor, esta será dirimida ao final da minha história.

A fazenda em que eu fora contratado para trabalhar como técnico agrícola estende-se por uma área intensa e divide-se em criação de gado a um lado e, do outro, eram cultivados tomates, abóbora e tangerina pelo processo tradicional. Eu aceitei o trabalho por já possuir experiência com aqueles produtos. Quando cheguei, fiquei impressionado com o estado da plantação. Segundo o proprietário daquelas terras ele vinha perdendo dinheiro desde que iniciara o método de cultivo sem agrotóxicos, porém sem nenhuma experiência e era exatamente em função das referências que tinha a meu respeito que decidira me contratar para recuperar sua lavoura.

- Estou perdido. Só não aceitei sua proposta de se tornar meu sócio porque ainda não o conheço a não ser pelas ótimas referências a seu respeito - ele me disse; e continuou - mas esteja certo de que pensarei seriamente no assunto à partir do momento em que comece a me fazer prosperar novamente. O que tem em mente?

Antes de responder a sua pergunta, procurei desconversar, falando de outros pontos referentes a sua forma de trabalhar, questionando-o sempre que me dava essa oportunidade. Apenas quando me senti satisfeito pelas informações que consegui captar nas entrelinhas de sua explanação é que me senti seguro em colocar-lhe detalhadamente o que eu pretendia fazer em suas terras. Se o falasse antes, poderia arriscar-me a ver desfeito nosso acordo, pois é certo que o deixaria muito inseguro quanto à eficácia do que eu lhe iria propor.

Era de dar dó o estado de suas plantações. Tirando a tangerina, o tomate e a abóbora que dão em qualquer época do ano, estava tão pobre a produção, tão aquém dos níveis normais de uma simples comercialização que comecei a duvidar de sua capacidade como agricultor. Ele mal começara, por conta própria, a implantar o cultivo natural e já estava a ponto de desanimar dos seus esforços inúteis. De longe, tive a nítida impressão de que os frutos vingavam e prometiam uma colheita bastante significativa. Os tomateiros subiam ao longo da leve inclinação do terreno. Eram de um verdor vivo; tinham uma folhagem quase abundante. Pouquíssimos estavam tombados ou caídos na terra. As leiras estavam carregadas. Entre uma e outra havia bambus fincados em leiras intervaladas e ligados por fios de nylon que, após serem esticados entre os bambus, desciam sobre os pés mais vulneráveis e eram amarrados a estes, mantendo-os na vertical. A ideia era mantê-los também afastados um dos outros, além de protegê-los contra as tempestades ou fortes ventos.

A abobreira cobria uma área impressionante, tal a sua extensão. Como é um legume que necessita algum cuidado para crescer vigoroso, por permanecer quase sempre oculto por sua enorme e abundante folhagem, imaginava eu a mão de obra exigida para um cultivo de sucesso. Como não vi pessoas ocupadas, dando a atenção que tudo aquilo merecia, indaguei-lhe o motivo. Obtive, como resposta a alegação de que, dos quatro empregados que trabalhavam para ele, um estava doente, outro de férias e os outros dois já não trabalhavam há dias por falta de pagamento. E estes fatos agravavam ainda mais a angústia do meu contratante. Perguntei há quanto tempo o terreno encontrava-se naquele abandono. Segundo me informou, há mais de uma semana a situação persistia. Foi quando pedi permissão para ver de perto sua lavoura.

Como eu pressentia, a coisa era pior do que aparentava à distância. Vi, de perto, o resultado do abandono. Havia muito poucos pés de tomate dignos de uma boa colheita futura. Embora protegidos contra as intempéries do clima, pois estávamos numa época do ano propícia a fortes ventos, não eram saudáveis os raros frutos remanescentes. Enganado pela visão que tive de longe, constatei a imensa quantidade de folhas amarelecidas e, o pior, larvas. Larvas esguichando-se ao longo dos galhos enfraquecidos. Formigas carcomendo as últimas folhas verdes dos arbustos moribundos. Encontrei as valas carregadas de refugos trazidos pelo vento. A terra ressequida. Apetrechos espalhados ao longo dos canteiros. Cestos, tesouras, regadores; mangueiras por cima das plantas, entortando-as visivelmente. Andei por ali, reatando nylons que se haviam arrebentado dos bambus; podando galhos e folhas imprestáveis; arrancando da terra tomateiros inteiramente destruídos.

Senti-me cansado após o longo tempo que passei envolto na tarefa de organizar, o quanto pude, o caos em se encontravam as plantações de tomate. Quando contemplei a extensão da abobreira, soube que seria inútil tentar fazer alguma coisa; sua condição era deveras alarmante. De longe eu já percebia alguns frutos amarelados, totalmente imprestáveis. Quando me aproximei para uma olhada rápida, visto que a escuridão da noite se aproximava, acabei por compreender a razão do desespero daquele homem. Simplesmente não havia frutos. O que se via por baixo daquelas folhas de aspecto enganador não passava de restos mortais do que deveria ser vigorosa produção. Protuberâncias apodrecidas destacavam-se entre a folhagem que, ironicamente, abundava, tomando enorme extensão do terreno. Três hectares de terra totalmente improdutivos.

Tive, naquela hora a certeza de que era o uso indiscriminado de agrotóxicos que estava causando o empobrecimento do solo. Durante sete dias seguidos estudei aquela plantação. Voltava diariamente e observava; queria certificar-me da minha desconfiança. Num desses dias tive a sorte de presenciar um verdadeiro ataque de pragas. Percevejos, formigões e lagartos; muitos lagartos, escalavam as folhas e os galhos destruindo, pouco a pouco, cada centímetro do que ainda restava. Foi aí que a certeza da minha constatação levou-me a tomar as medidas que eu tinha em mente. Reuni todos os empregados e orientei-os no que deveriam fazer dali em diante; não sem, antes ter, longamente, conversado com meu empregador e o convencido da mudança a ser feita.

Chamara-o no momento exato da infestação e tivéramos uma longa e sincera conversa. Ele relutara à princípio. Alegou receio de não conseguir, à tempo, sanar todas as suas dívidas; dívidas essas contraídas com fornecedores. Disse-me que os atravessadores andavam no seu pé desde que souberam que haveria atraso no repasse das mercadorias ao comércio autorizado. Muito dinheiro estava em jogo, segundo ele e muito já se lhe adiantara na certeza e confiança de uma ótima safra. Agora, com este desastre e com minha proposta mirabolante não via luz no fim do túnel. Logo, não sabia o que fazer. “Estou entre a cruz e a espada” desabafou e eu vi seus olhos umedecerem quando pronunciou estas palavras. Frisei que não precisava se inquietar àquele ponto e que tudo se resolveria à contento.

- O senhor vai perder um bocado de dinheiro, mas isto será temporário - eu disse, tentando lhe transmitir confiança.

- Como, se me pede de dois a três anos de solo improdutivo!?

- É o que eu venho explicando. O método de agricultura natural trabalha na recuperação do solo viciado em pesticidas. Este tempo é crucial para fortalecer novamente as suas terras, capacitando-a a produzir naturalmente. É pagar para ver. Será que minha reputação não é suficiente para por isto em prática? Já o pus a par de toda técnica de que disponho; o que mais quer? Vamos partir para a prática imediatamente!

Foi a poder de muito diálogo e exercício de minha paciência que o fiz aceitar minha assistência.

Três anos se passaram. Tivemos um feriado prolongado na última semana e eu fui visitar meu cliente. Fiquei impressionado pela exuberância do que vi. Dava gosto ficar ali, no meio daquela maravilha. Não só o tamanho como a beleza da cor e o inesquecível sabor dos produtos da agricultura natural que implantei naquela propriedade fortaleceram em mim a certeza de continuar fazendo o que faço para o progresso de todas as áreas cultiváveis que aceitarem a minha humilde colaboração.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 15/05/2016
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