UMA TARDE DE DOMINGO

Eram dez horas da manhã. Metade do pessoal já havia chegado. Como sempre, sem a menor cerimônia, tinham armado a churrasquerinha. Se pudessem trariam uma muito maior, mas aí não haveria "cafezinho" que convencesse os guardas do Parque do Ibirapuera a deixarem "meter o fogo na bomba". Estavam no gramado ao lado do parquinho, perto da Marquise. Assim agradava quem tinha filhos pequenos e também aqueles cujos rebentos já estavam na "aborrecência". Estes iam patinar ou andar de skate no piso liso sob ela.

Uma das cláusulas pétreas do regulamento do grupo era que não se podia trazer nenhuma representante do sexo feminino. De nenhum gênero. Nem esposas, ex-esposas, namoradas, amigas, primas, sobrinhas, irmãs, amigas da filhas que fossem maiores de 18, absolutamente nenhuma. Exceto lógico as próprias filhas. Uma das poucas exceções era a Amanda. Membra fundadora, dona de um corpo e rosto lindos. A musa da turma. Com o único porém que da fruta que eles gostavam ela comia até o caroço. Sua filha era uma linda senhorinha de doze anos:-"A melhor ressaca da minha vida. Não, porquê imagina o nível sanguíneo na minha corrente alcoólica para eu ter ficado com um homem?". Então não chegava a ferir o espírito de um clube de pais. O filho dele de dez anos brincava com a filha dela de skate enquanto conversavam e fumavam numa mureta em frente do vão.

-Amiga, eu estou preocupado com o futuro do nosso clube.

-Ué, porquê? Você acha que está ficando inchado demais? Eu também tô preocupada. Nós éramos quatro há três anos. Pela minha última contagem estamos em trinta. Se você contar os eventuais vai para a casa dos cinquenta. E a cada semana entra mais gente! Só que se organizar demais pode ficar chato.

-E se não organizar pode virar bagunça. Mas não é isso. Nós perdemos o propósito original. Lembra de quando nós se conhecemos naquela montagem de Saltimbancos no Sesc Ipiranga?

-Sim, e depois levamos as crianças no Museu. O João ficou me cantando o tempo inteiro, coitado.

-E você foi má! Muito má. Só quando o coitado já estava fazendo biquinho, olhinhos fechados, os braços no seu ombro... Você conta que não gosta da fruta. A cara dele era impagável. Devia ter tirado uma foto.

-Não vem que não tem, que foi você mesmo que se ligou no movimento. Se apresentou e já propôs zoarmos ele. Não vêm querer dar uma de santinho agora. Aliás, como você percebeu?

-&"Detalhes tão pequenos de nós dois, são coisas muito grandes para esquecer..."

Tomou um baita murro no ombro: Vou te dar uma surra, Arnaldo! Não sou Paraíba, não! Aliás, era o que eu devia ter feito aquele dia. Sério, o quê te fez perceber?

-Você e a Vitória estavam com a camiseta do Corinthians em pleno domingo de decisão do Paulistão. Nenhuma mulher vai ao teatro, nem que seja infanto-juvenil, sem se emperequetar. Sua filha estava a caráter, mas você parecia que tinha acabado de sair da cama. Até aí eu só estava desconfiado. Mas quando me apresentei e você me deu aquele olhar de asco e me mediu de cima em baixo... Tive certeza.

-Cê se acha, né? Olha eu posso até pertencer ao lado negro da Força. Mas com tudo o que você tá me falando eu acho que você serve ao lado róseo. Sua mulher não se separou por ter achado um outro homem na cama não?

-Não, fui eu... Enquanto sabia e ela não sabia que eu sabia, ia. Mas continuar sabendo e ela sabendo que eu estava sabendo... Muita sabedoria para suportar.

-Péra, péra, péra. Você sabia que sua mulher tinha um caso e mesmo assim levava "de boa"?

-Nas palavras do grande filósofo Falcão:-&"Seja ignorante mas não seja burro. Seja intolerante mas não seja otário. Porque é melhor comer doce de leite com os amigos, que merda sozinho."

-Ah malandro! Você é muito manso. Se é mulher minha vai parar no hospital.

-Você pode! Ainda não inventaram uma lei Maria Sapatão da Penha.

Os dois riram folgados. Os dois filhos deles vieram correndo.

-Pai, pai, Me dá dinheiro para alugar uma bicicleta e tomar um sorvete. A Vitória estava fazendo o mesmo pedido para a mãe que soltou um suspiro. Antes que ela pudesse falar:

-Toma aqui uma onça. Com esses cinquenta reais dá para alugar duas bicicletas e ainda tomar sorvete. Quero você aqui daqui uma hora e meia, inteiro e com a Vitória. Traz o troco, entendeu?

-Sim, pai. Saíram correndo.

-Formam um bonito casal.

-Brigado amigo. Fico te devendo.

-Fica nada. Para com isso. O que me leva à origem da nossa conversa. Eu acho que nosso grupo está se pervertendo.

-Como assim?

-Lembra da nossa reunião no bar do Nico?

-Se lembro. Porra de lugar caro do cacete. No domingo que a gente voltar lá no Parque da Independência, ou nós vamos no Hamburguer do seu Oswaldo ou nem me convidem.

-Tá, tá, deixa eu falar. Lembra de como eu, você, o Chico e o João ficamos comentando de como é difícil ser pai separado. Esta coisa de só ver no final de semana, de não ter outras crianças para nossos filhos interagirem e ficar aquela coisa meio esquisita de só nós e eles. De todo o movimento que algumas ex-mulheres fazem para atrapalhar o nosso relacionamento com eles e tudo mais.

-Lembro. E lembro de como fiquei completamente deslocada no assunto. Porque para todos os parâmetros eu sou mãe solteira. A última coisa que eu quero é que o pai da Vitória a conheça.

-Mas você continuou com a gente porque gostou dos nossos propósitos, isso eu sei. Formar um grupo onde as crianças encontrassem outras da mesma idade e que se ajudasse nos problemas comuns. Nas ex-mulheres chatas, nos casos de alienação parental, a pagar a pensão pontualmente em caso de alguma necessidade, aconselhar. Era essa a ideia do Clube Príamo.

-O pai que foi implorar o corpo de seu filho Heitor das mãos de seu inimigo Aquiles para que ele fosse sepultado adequadamente. Mesmo depois do grego ter amarrado seu corpo em sua biga e arrastado na frente das muralhas de Troia. Tudo isso com ele vendo. Não é bonito? Quem escolheu? Quem escolheu? Fala! Fala, se não eu não deixo você continuar.

-Você...

-E qual era a ideia de vocês?

-Falange dos Pais Solteiros...

-Pronto, agora pode falar o que você quiser. Meu, eu nunca me canso de ouvir esse nome. Devia ter deixado.

-Você é uma figurinha carimbada mesmo. Mas vamos ter que mudar de nome. Clube Casanova ou Associação dos Tios Sukita.

-Hahahaha! Mas é muita maldade. O artista tem que ir onde o povo está. As mulheres onde estão os homens. Eu não posso reclamar. Já peguei umas três rebarbas de vocês.

-Tudo bem. Namorar é preciso. Mas está ficando demais. Pô, a gente escolhe um lugar diferente toda semana para ir. De uns tempos para cá sempre tem pelo menos quinze já esperando. Quando a gente vai embora são mais de cem. O Carlos, o Aurélio, o Cunha e mais uns quatro nem filhos tem. Trazem sobrinhos ou filhos de amigos. Sabe aquele menininho loirinho tímido com quem eu estava conversando domingo passado. O pai dele é casado! O cara tira a aliança e fala que é separado. E tô achando que não é só ele não.

-Mas você quer o quê? A mulherada está na caça. Homem bom, maduro e solteiro só existem cinco tipos; casado ou enrolado, homossexual, solteirão convicto e pai separado. C'est la vie!

-Você disse cinco.

-Aqueles que tem esqueleto escondido no armário. Tipo dez processos por agressão, mãe dominadora, fanático por alguma coisa. Existe o tipo puro e o espalhado entre os outro grupos.

-É, mas com isso todo mundo está esquecendo os filhos, os outros integrantes, de discutir formas de se defender de abusos por parte das mães. Se não fosse as amizades que o Pedrinho fez e algumas pessoas como você, eu saía.

-Não, agora eu me emocionei. Se fosse minha praia, hoje você ia para o abate.

-Nossa! Que romântico.

-Romantismo é aquilo que a gente usa para que elas caiam na teia. O problema de vocês homens é que é a aranha delas que os engole.

-Você não presta!

-Mas agora falando sério amigo. Nunca te vi paquerando as moscas de padaria que colam em nós. Aquele monumento da Francine ficou uns quatro meses nos perseguindo por sua causa. Pediu minha ajuda, jogava um charme dos diabos. Até ficou com o palerma do João para te fazer ciúme! E você nada. O que acontece? Trauma, o chifre ainda dói, paixão recolhida, comunga em outra paróquia. Qual é o problema?

-Sei lá. Sou estranho mesmo. Quanto a Francine, não era meu tipo. Muito princesa.

-Ela era o quê? Agora eu não entendi nada. Qual é o problema de uma mulher ser princesa?

-Três. O fato dela saber que é uma princesa, o detalhe de você saber que ela é uma princesa e a maldição de todos saberem que ela é uma princesa. É um porre! Também não quero mulher para uma noite só. Quero uma amiga... Aí Amanda, vamos namorar?

-Vamos! Casa, comida, roupa lavada, quatro mil por mês e três litros de vodka cada vez que você quiser dar uma bombadinha. Meu Deus! Você é um milagre. O homem perfeito!. O cara que toda mulher sonha mas nenhuma quer. Vou te vender para algum laboratório.

-Ridículo, né? &Esse cara sou eu!

Enquanto os dois riam os filhos voltaram nas bicicletas alugadas. As bocas meladas do sorvete. O menino só devolveu o troco depois que o pai pediu. Quinze reais. Pelo menos dez estavam faltando nesta conta. Arnaldo deu um suspiro e a mente foi para aquela zona nebulosa em que morava a pergunta: Como educar um filho estando longe? No trajeto até a churrasqueira onde estava a maioria dos colegas decidiu vir sempre com mais dinheiro trocado.

-Pai, nós vamos devolver as bicicletas.

-Vai filho, vai.

A Amanda se virou para onde estava a maioria do pessoal. De repente abriu um enorme sorriso:

-Ei, aquela que o Juarez está chavecando não é a Estela?

-É ela sim, porquê?

-Nada. Ôh Juarez! Juarez. É, você mané! Chega aí. Pede para a Estela vir também.

O Juarez merecia o nome que tinha. Apesar de não ser gordo parecia figurante mexicano de filme de faroeste. Para piorar deixava um enorme bigode. A ideia era ficar parecido com o Belchior, de quem era fã. Mas lembrava Pancho Villa. Estela era uma mulata com seus 28 anos. Parecia uma ex-rainha de bateria. 1,76m, um lindo rosto, muito inteligente. Acabou virando uma das agregadas do grupo. Tinha um menino de oito anos e uma menina de seis. Durante a semana trabalhava e fazia faculdade de enfermagem à noite. A irmã mais nova cuidava dos seus filhos. As crianças dela começaram a brincar com as crianças de alguém em uma vez que foram no zoológico. Marcou com um membro do grupo para sair, depois com outro, depois com mais um. Sempre aos domingos depois dos encontros do clube e de deixar os filhos em casa. No máximo o que eles conseguiam era um beijinho que custava saber o lugar da próxima reunião. Quando ficou claro que o que ela queria era companhia para os filhos brincarem tentaram dar um gelo na coitada. Arnaldo defendeu-a com unhas e dentes. Decidiram que podia saber com antecedência onde eles iam se reunir e ela passou a ser presença constante. Mas fora um "muito obrigado" dela, nunca conversaram.

Se cumprimentaram e Amanda disse:

-Gente, nós trazemos as crianças aqui mas só elas que se divertem. Vamos jogar um pouco de basquete. Um dois contra dois clássico.

Juarez fez uma cara de nojo: Legal, mas a gente não tem bola.

-Eu trouxe uma no carro. Pego rapidinho. A gente deixa as crianças de platéia. Minha filha cuida dos menores.

-Vamos, vamos! Faz anos que eu não jogo basquete. A Estela disse empolgada.

-Então tá. Eu vou pegar a bola lá fora. Arnaldo espera as crianças aqui e leva lá na primeira quadra perto da portaria. Seus filhos estão onde?

-Aqui no parquinho. Os dois disseram juntos.

-Certo. Então vocês vão junto com o Arnaldo.

Demorou um pouco para conseguir uma meia quadra vaga. Mas depois não saíram mais. As duas mulheres se equivaliam e Arnaldo estava no mesmo nível delas. Quem sofria era Juarez. Mas de olho na mulata, não desistia. Para surpresa do amigo, Amanda fazia questão de só jogar com ele e fazia marcação dura, acintosa até, em cima da Estela. Mesmo só tendo 1,66m.

Jogaram por quase uma hora. Juarez estava completamente esgotado e tinha dado o horário dele de levar o filho para casa. Cumprimentou-os e foi embora. Arnaldo já ia fazer o mesmo quando a Amanda interviu:

-Onde você mora mesmo Arnaldo?

-No Cangaíba. Perto do Hospital Ermelino. Você sabe disso.

-Nossa, que coincidência. Eu moro em São Miguel Paulista.

-Onde Estela? Perguntou a Amanda

-Na Nordestina, do lado do corpo de bombeiro.

-Eu moro ali perto. Na rua da estação de trem.

-Mas ali só tem comércio.

-Moro em um apartamento em cima dos sobrados. Ouvia-se um tom de rancor e ironia na voz das duas. Era algo que já era perceptível na quadra. Arnaldo olhava para a amiga com um olhar de interrogação.

-Vai ter um show de graça do Jorge Aragão na Praça do Forró hoje. Disse a Estela.

-Eu vou mas tenho que sair cedo por causa da Vitória.

-Legal. Eu já estava sabendo mas não queria ir sozinho.

-Minha irmã já se ofereceu para cuidar das crianças para que eu fosse. Só faltava companhia.

-Então está combinado. Cada um vai para sua casa e se encontra em frente da Igreja de São Miguel Arcanjo às sete e trinta. Fechado?

-Fechado!

Arnaldo e Amanda tinham vindo no carro dele. Entregou seu filho na casa da ex-mulher e já entrou no carro perguntando:

-Qual é a jogada Amanda? O que você está aprontando?

-Do que você está falando?

-Para! O que foi aquele teatro todo com a Estela?

-Tô te arrumando a mulata, seu trouxa! Se depender de você sua mão vai criar pelo.

-Oh mãe! A menina até tirou os olhos do celular de espanto.

-Ahh! Não vêm com frescura Vitória. Falo mesmo! E você vai ajudar seu tio a desencalhar.

-Como eu vou fazer isso?

-Exatamente as dez e meia você vai pedir para voltar para casa. Eu vou brigar mas você vai insistir.

-Você não tem jeito Amanda. Disse Arnaldo rindo.

-O quê eu não faço pelos amigos?

*******

O show estava ótimo apesar da multidão. Estela ofereceu para Arnaldo guardar seu carro na garagem da sua casa que era espaçosa. Amanda não parava de se agarrar no amigo e de soltar indiretas para a outra. No horário combinado sua filha pediu para ir embora. Foi fingindo estar muito contrariada.

-Ela é fundadora do Príamo, não é?

-É sim. Minha melhor amiga.

-Desculpe falar. Todo mundo diz que ela é sapatão. Mas eu acho que eles estão enganados. Ela está apaixonada por você.

-Hahaha! Impossível!

-Tá, então como ela tem uma filha?

-Segundo ela o erro mais acertado que já cometeu.

-Talvez ela queira errar acertando de novo...

-Não... Além disso nos vemos quase todo dia. Eu trabalho na Zona Sul e é muito ruim ir de carro. Encontro com ela quando volto e sempre conversamos um tempão.

-Encontra todo dia?

-Ela tem uma barraca de batata-frita na frente da estação. Sempre faz fiado.

-Ah...

Jorge Aragão reapareceu no palco depois de uma pausa:

-&"Logo, logo assim que puder, vou telefonar

Por enquanto está doendo"

-Aí, eu amo essa música! Se agarrou no braço dele.

*******

Entrou devagarinho no quarto, não ligou o interruptor, deixou apenas que a luz que vinha da porta iluminasse o ambiente.

-Maria, Maria, acorda!

A moça tirou o edredon de cima da cabeça com um ar sonolento: Que foi Estela? Vai para cama.

-Me escuta mana. Eu vou dormir na casa do cara que deixou o carro aqui na garagem. As crianças estão bem?

Já desperta e sorrindo: Aí maninha! Se deu bem, heín? É ele o gato que você sempre fala? Pode deixar que eu levo as crianças na escola amanhã.

-É ele mesmo. Tá, vou pegar só minha roupa para trabalhar amanhã e minha bolsa da faculdade.

-Leva aquela calcinha vermelha de rendinha.

-Não... Muito puta.

-Para! Você já tá dando para ele no primeiro encontro. Faz o cara virar os olhinhos.

-Haha! Tá certo. Valeu mana. Pegou as coisas e saiu.

A irmã de dezessete anos ficou sentada quieta. Quando ouviu o carro sair se levantou, foi até a janela e a abriu:

-Eles já foram, pode sair.

Uma mulher saiu debaixo da cama e a abraçou por trás, a mão já deslizando para dentro da sua calcinha:

-Eu não disse que ia fazer sua irmã dormir fora de casa hoje?

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 13/05/2016
Reeditado em 26/09/2024
Código do texto: T5634667
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