Intimidades 104
D. Josefa na minha infância
Quando endoidou já os filhos, crescidos, tinham importância. Tanta que se envergonhavam de a ver descalça, mamas caídas, de apenas um pano preso ao fio da cintura e carapinha por pentear. Pernas ao léu, sorriso de dentes perfeitos, mansidão. D. Josefa corria todas as ruas da cidade pequena, entrava e saía dos quintais, comia sem licença da fruta que havia, abancava onde lhe apetecesse chá, torradas, café. Era o medo que a servia, a tolerância que a guiava ao regresso, a liberdade o bem que lhe ficara depois de perder a razão, o amor, a certeza no futuro. Muitas vezes a via sentada nos degraus da porta a apanhar sol. Esfregava-se em óleo de amêndoas doces e tudo o que mandasse era cumprido, tudo o que quisesse era feito. Eram ordens do filho mais velho que tinha gosto em a proteger sem lhe coartar movimentos. Ali não havia manicómio, nem hospital capaz de a deter e, ainda que houvesse, ninguém pensara em ampliar o problema prendendo quem, feliz e leve, não fazia mal a ninguém. Não se tratava. Ao tempo gastava-se até ao fim a saúde toda e morria-se onde fosse mais à mão, a maior parte das vezes em casa. Um dia levou o bebé e o cachorro da vizinha. Colocou o menino às costas, acendeu o cigarro que fumava com o lume dentro da boca, libertou o cão e seguiram os três, em direcção ao rio. D. Josefa cantava e dançava para embalar o bebé e, no intervalo, ria, ria muito, como se nunca tivesse estado tão feliz. Quem viu avisou. Quem a encontrou acenou como se tudo fosse natural, pediu para ver a criança, chamou o cão e convidou-a para um copo de tinto. E vieram todos em paz ao encontro da mãe que já chorava, descabelada, a perda do menino.