O Fim de Um Traficante

Apesar de toda pobreza e de toda limitação material, aquelas casinhas que vemos no alto dos morros são os faróis que dão vida e claridade a nossa cidade. Aqui em baixo somos banhados pela profusão de luzes; contemplamos esse belo toda vez que viajamos e pegamos uma serra que cruza a cidade ou mesmo da janela de onde moramos, se permite a posição do terreno, a visão é a mesma, sempre encantadora. Lembro-me como se fosse hoje. Eu morava num apartamento, desses que ficam de frente para o panorama proporcionado por esse conjunto. Minha janela do quarto dava para a frente do morro. Dali, presenciei uma cena que até hoje não me sai da memória.

As ruas que dão acesso ao morro se multiplicam e grandes escadarias levam aos barracos amontoados lá em cima. Podiam-se ver, a polvilhar o céu escarlate nos fins de tarde, as pipas e suas cabriolas, carregando de cores o horizonte. Eu jamais poderia imaginar que, entre aqueles moleques descompromissados com a vida, houvesse um que marcaria definitivamente o meu espirito. Chamava-se Sandro e tinha não mais do que 12 anos. Ele circulava entre os mais de trinta garotos que esticavam suas linhas, procurando um melhor ângulo para as pipas que empinavam e, assim, uma ou outra se destacava pelas lindas circunvoluções que faziam. Sandro corria de um lado a outro no terreno escarpado, rodeado de sacos de lixos, formando monturos que ganhavam altura ao serem ali atirados. Meninas descalçadas, crianças de não mais que três ou quatro aninhos, algumas barrigudinhas de vermes se juntavam ao grupo, inocentes, querendo nada além do que mostrar um pouco de suas travessuras.

Quando o bando se aproximou Sandro já sabia do que eles estavam atrás. Vieram em motos, duas para quatro ocupantes. Sandro, imediatamente, deu a ordem para que todos descessem seus papagaios e entrassem para suas casas. A correria não se fez esperar. As linhas se entrecruzavam. O esvoaçar das pipas despertou o movimento de outras partes do morro. Nos galhos de árvores, sobre os telhados de alguns casebres caíam e ali ficavam até que um se aventurasse no ato de resgatá-las.

Perto dali, num dos barracos de tijolos, no alto da escadaria, Dedão se esvaia em sangue, estirado sobre o leito, tendo a mulher a seu lado, em prantos, desesperada com o estado do marginal. Dedão era o chefe do tráfico da comunidade e estava a ponto de perder a posição para Pulga que o pegara numa emboscada. Tati, a esposa, ouviu o barulho das motos e foi até à janela. Deu, nessa hora, como certa a morte do marido. Os homens já traziam, empunhadas, as armas da execução. Sandro era seu filho e se viu não menos perturbado do que Tati com a iminência de ver o pai assassinado. Ele tentou correr para comunicar em casa a chegada do bando, mas foi impedido por conta da forte pernada que levara de um dos capangas; caiu de cara no solo, mas logo se levantou.

- Fica quietinho aí se não quiser pegar a sobra - preveniu Pulga.

Não teve jeito. Dedão foi morto covardemente e a mulher avisada para deixar o morro. Só não morreu porque pediu, implorou ajoelhada, em nome de Deus que a poupassem para cuidar daquela criança que ficaria só no mundo e desamparada. O menino presenciou toda a cena, subindo sorrateiramente e se pondo atrás do barraco, olhando por uma brecha. Viu a morte do pai. Viu a mãe e sua humilhação. Aquele dia nunca mais sairia de sua cabeça. Teve que se meter, espremido, entre a máquina de lavar e a quina da parede para não ter o azar de ser visto pelos bandidos. Devem tê-lo esquecido, mas um dos marginais, antes de acompanhar os outros que já ganhavam os degraus da escada, deu alguns passos na direção onde Sandro estava escondido. Por sorte não vistoriou; apenas deu uma olhada e, satisfeito, deixou o local.

O tempo passou, Sandro foi educado pela mãe viúva dentro dos padrões de uma educação exemplar, longe do tráfico, num bairro pacato em que assaltos, trocas de tiro e outras bandidagens eram só conhecidos através das notícias de televisão, jornal ou veiculadas na Internet. Contrariando todas as vontades, não quis ser médico ou engenheiro, mas um profissional de combate ao crime e à bandidagem. Ao se formar delegado, deixou evidente a revolta de ter visto o pai assassinado. Agora podia matar; não mais se tratava de simples vingança, senão de uma missão a cumprir: exterminar, pela força da lei e da violência, se necessário fosse, os vermes que empestavam a sua sociedade. Pulga era apenas um deles.

Sandro era incansável em sua função de repressão ao tráfico. Não hesitava em subir os morros, no comando de sua equipe e enfrentar as armas dos criminosos, muitas vezes mais possantes do que as de seus homens. Mais de uma vez foi ferido à bala, encurralado e ameaçado de morte por facções poderosas. Mas isto só contribuía para fortalecer sua coragem e convicção de limpar sua cidade do tráfico de drogas. A morte ou a prisão de um chefe era motivo de festa e comemoração. Até que ressurgiu pulga em seu caminho.

A notícia de que um perigoso traficante se encontrava no hospital, após ser baleado pela polícia que chegou a tempo de evitar a explosão de um caixa eletrônico, levou Sandro a lhe fazer uma visita, pois soube tratar-se de Maluquinho, filho de pulga.

- O que quer de mim, doutor? Tô cheio de balas, sei que não escapo dessa.

Sandro contou sua história. Disse da morte do pai, Dedão, assassinado covardemente por Pulga. Prometeu ao bandido uma intervenção em seu favor a fim de reduzir sua pena; era só entregar o paradeiro de Pulga. O bandido, convicto da própria morte, entregou o paradeiro do pai, facilitando sua prisão. Morreu no dia seguinte, arrependido por ter seguido o caminho do crime. Não precisou se esforçar o delegado para caçar e prender Dedão. Pegou-o dias depois no cemitério, chorando, desesperado, a morte do filho. Identificou-se, contando, em detalhes o que se passara naquele dia negro e inesquecível da morte do pai.

- Poderia mandá-lo para o inferno, como fez com meu pai. Não me importo se ele era também um criminoso, mas era meu pai. Nem todos os filhos seguem o mesmo caminho do pai. Olha o seu exemplo e olha o meu. Farei com que passe o resto de seus dias no fundo de uma cela. Talvez não sofra tanto por isso. Porém, vejo que já está sentindo o que é perder um ente querido. Não estou feliz por isto, mas espero que pense no que fez e se arrependa, como fez seu filho no leito de morte.

Foi essa a vingança de Sandro, que dedicou sua vida e sua carreira para se acertar com o assassino do pai; ainda assim e apesar de tudo, nunca deixou de ser delegado.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 05/05/2016
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