O Gato

Assistindo à televisão em uma manhã de quarta-feira, uma menina ouve da janela uma batida de palmas. Abre a porta da sala. Ninguém. Ao fechar, olha uma cesta de palha no chão, envolta em um tecido leve e translúcido. Agarra-a e leva para dentro. Ao abrir, surpresa! Um gato! Um filhote de gato siamês, com pelo bege claro; as pontas das patinhas pretas, assim como a cauda, as orelhas e o meio da face. Contrastando com as cores neutras, um lindo par de olhos azuis, muito claros. A criança logo se encanta com o bicho e corre para mostrar para sua mãe, que está preparando o almoço na cozinha.

- MÃE! MÃE! Olha o que eu achei!

A mulher, com os olhos lacrimejados de cortar cebola, olha para o lado, surpresa.

- Onde você achou isso?

- Deixaram na nossa porta. Podemos ficar com ele?

- Nem pensar! Já tenho muito trabalho nessa casa, não vou ficar limpando sujeira de gato.

- Mãe, por favor!

- Já disse que não, Sabrina.

A menina começa a chorar baixinho, olhando para o filhote.

- Mas então.. O que vamos fazer com ele?

- Quando seu pai chegar, dê para ele levar em uma loja dessas que vendem animais.

Desanimada, a criança pega a cesta e volta para a sala.

Durante muitos minutos, fica a olhar, com a cesta no colo, o gatinho. Tão bonitinho! Queria tanto ter uma companhia pra ficar em casa! Sua mãe, sempre triste, parecia não gostar muito da vida. Coitada.

Barulho de automóvel e da porta da garagem abrindo. Era seu pai. Ouvia o mesmo som todos os dias na hora do almoço.

Como quase sempre, seu pai chega em casa cansado e abatido.

- Bom dia, filha!

- Oi paizinho! Olha só o que eu achei.

Leva a cesta até seu pai e alcança o gato com a mão para ele pegar.

- Um gatinho. Que lindo!

- Podemos ficar com ele, pai? Por favor!

- Claro que sim. Já deu nome a ele?

- Ainda não. Gosto de “Fofinho”. O que você acha?

- Legal. Fofinho, agora você vai ser da nossa família.

Nesse instante, a mulher entra segurando uma panela de arroz quente, com uma cara de poucos amigos.

- Mas não vai mesmo! Já disse à Sabrina. Quero esse gato fora da minha casa ainda hoje!

- “Nossa casa” você quis dizer, certo?! rebate o homem com ironia.

- Tanto faz! O fato é que esse gato não fica aqui.

- Mas mãe..

- Nada de mas! Eu que limpo a casa.

- E eu que sustento.

A mulher olhou bem para os olhos do marido. Sentiu gana de esbofeteá-lo. Maldito! Como ousa jogar na sua cara que era sustentada por um homem! Sentiu-se humilhada e precisava revidar, tinha essa necessidade. Sua mãe sempre lhe disse que não devia se rebaixar para homem nenhum.

- Vendeu algum carro hoje, Paulo?

Ela sabia que ele não havia vendido, pois quando vende é a primeira coisa que diz quando chega em casa, sempre gritando orgulhoso.

“- Na-Não, Mônica. Não vendi nenhum carro hoje.” responde, exitante e com um semblante envergonhado.

Pronto. Era o que precisava para ferir o orgulho de macho provedor dele. Era a carta na manga que ela sempre usava em situações que tinha necessidade de fazê-lo se sentir diminuído.

- Como eu pensei. E ainda acha que temos condições de criar um gato.

- Não acredito que vai custar muito. Tão pequeno.

- Vai crescer e eu não vou cuidar desse bicho. Já tenho a casa e vocês dois. É o bastante!

- Bem.. Estou cansado. Discutimos isso depois. Agora vou tomar um banho antes de almoçar. Toma filha.

Paulo passa o gato para a menina e dirige-se ao banheiro.

Minutos depois, a mãe termina de pôr a mesa e chama o marido e a filha para comer.

Depois do almoço, como sempre, Sabrina vai se arrumar para a aula e Mônica vai para a cozinha lavar a louça e preparar o lanche da filha. Paulo fica na sala vendo televisão.

O homem toma o gato nas mãos e começa a brincar com o bichano. A esposa, indo e vindo com as panelas, olha de relance o marido com o gato. Naquele momento, vê nos olhos do marido o brilho de felicidade que já não via há tantos anos. É só um bicho! Como um bicho pode tornar uma pessoa feliz? Não consegue compreender.

Uma hora e meia da tarde. O pai chama a filha para irem.

- Vamos, querida. Senão, nos atrasamos.

- Já vou, mais um minuto.

O homem olha para o lado. A mulher imóvel, segurando a lancheira da filha. Há quanto tempo não lhe dá um beijo? Nem se lembra. A última vez que tentou beijá-la, recebeu indiferença. Sexo? Há mais de um ano sem fazer. Quando sentia desejos de se satisfazer, ia para o banheiro se aliviar. Apesar de tudo, gostava dela, a amava! Ela sempre fora uma boa mulher, boa mãe e por que não dizer boa esposa?! Não acordava cedo para fazer café da manhã para ele? Não lavava e passava suas roupas? Não deixava a casa limpa e cheirosa todos os dias? Definitivamente, era uma boa esposa! Onde se perdeu o amor? Não sabia dizer. A rotina lhe cegou os olhos do coração. Agora eram duas pedras em frente à porta da casa esperando a filha.

A menina vem correndo, com a mochila nas costas, quase do tamanho dela. A mãe lhe passa a lancheira, lhe deseja boa aula e lhe dá um beijo na testa.

O marido se despede da esposa.

- Tchau, querida.

“- Tchau” responde, seca.

Mônica, fechando a porta, lembra-se do gato. Rapidamente, abre e grita.

- Ei, Paulo. Esqueceu do gato.

- Me desculpe, querida. Agora não posso. Sabrina vai se atrasar pro colégio e eu pro trabalho.

O homem fecha a porta do carro e dá a partida.

A mulher, furiosa, bate a porta com força.

O gato desperta com a batida e começa a miar.

- Que ótimo! Agora esse bicho vai ficar fazendo barulho a tarde toda..

Dirige-se ao banheiro para se lavar. Tira a roupa, olha-se bem no espelho. Ainda mantinha a beleza da juventude. Já não tinha a pele tão suave e os cabelos tão sedosos, mas ainda era uma mulher bonita, alta, com traços delicados. Lembra-se dos 18 anos de idade, quando venceu um concurso de beleza na sua cidade. Sentiu-se tão bem naquele momento. Sempre teve a beleza elogiada por todos. Por que não ouviu a mãe? (Minha filha, quero que você seja modelo, você nasceu para ganhar o mundo!) Mas qual.. Apaixonou-se por um rapaz alegre e brincalhão da faculdade. Perdeu a oportunidade de ir para Paris e se casou com ele. Não tinha um dia que não se arrependia disso. Sua vida poderia ter sido completamente diferente. Entra no box e liga o chuveiro. Sente-se tão solitária! Sua mãe sempre fora sua única amiga verdadeira. Agora estava morta. Lembra-se nesse momento que deve levar flores para o túmulo dela. Não conseguiu ir mês passado.

Gosta do aroma suave do sabonete que usa. Ensaboa-se por todo o corpo, ao mesmo tempo que sente o calor da água percorrer sua pele. Adora tomar banho! O momento do dia que se sente mais confortável. Ao sair do banheiro, ouve novamente o gato miando. Será que está com fome? Pega um pires, derrama um pouco de leite e oferece ao bicho. Ao tirá-lo de dentro da cesta, se dá conta de quanto tempo não segura um animal nas mãos. Lembra-se do único bicho de estimação que teve, ainda criança. Uma adorável cadelinha Basset, sempre tão faceira com suas orelhas imensas e seus grandes olhos tristes contrastando com sua alegria de viver! Sente um aperto ao lembrar dela, enquanto coloca o gatinho em frente ao pires. Voraz, o animalzinho esvazia o recipiente em poucos instantes.

- Nossa, quanta fome! Parece que nunca comeu.

Sorri ao dizer isso para o gato. Sente-se estranha. Se dá conta de que fazia muito tempo que não sorria.

Após se lamber por uns instantes, o gato levanta a pequena cabeça e, com seus expressivos olhos azuis, encara a mulher. Por um instante, ela tem a impressão de que ele quer falar com ela. Será que quer me agradecer? Como que sente internamente a mensagem que o bicho quer lhe transmitir. “Você me alimenta e me dá proteção. Sou-lhe grato por isso. Você é importante para mim.” De repente, o gato se aproxima da mulher, que está sentada de joelhos no chão, e lhe esfrega a cabeça em uma de suas mãos. Esse carinho faz tão bem a ela! Sente-se como se tivesse recebido uma injeção de serotonina. Olhos lacrimejando. Choro. Quanto tempo não chora? Não, agora não por cortar cebola. Agora é o amor que recebe de um ser minúsculo, de outra espécie, mas que parece entendê-la melhor do que seus próprios semelhantes. Ela retribui o carinho afagando o pescoço frágil do bicho.

“-Obrigada, Fofinho”, agradece em voz alta, na esperança de que ele possa compreender a importância que tem para ela.