TROCADO DIA
Ueverjânia faz zzzzzzzzzz...
De repente, sua pálpebra esquerda soergue-se lenta e pesadamente como um contêiner de ferro, abarrotado de mercadorias, puxado por um guindaste nas docas. São 07h40min da manhã. O despertador mecânico, o qual chacoalha em estridente Trimmmmmmmmmm... Não se manifesta em seu ofício de despertá-la. Encontra-se mudo e teso por falta de reposição de pilhas novas. Contudo, o raio solar adentra pela fresta da janela, criada pelo impacto de um secador de cabelos arremessado no extravasamento de certa decepção amorosa, acordando a garota. Porém, não é eficaz a ponto de colocá-la fora da cama às 07h00min. Nesse horário, a nesga solar não havia chegado à bacia da orelha direita da jovem; esquentando-a. De um susto a um sobressalto, ela se prontifica em seu banheiro, escova à mão e o rosto vincado pelo lençol, ao qual havia se engalfinhado. Nisso, a escova marcha em sua boca: esquerda, direita, esquerda, direita... Ouve-se um balbucio, quase inteligível: - IXTÔ ATCHAXADA!
O creme dental verde e espumoso escorre em sua mão esquerda cobrindo uma cicatriz em L. Um fino veio esverdeado estagna-se na cova da articulação de seu braço.
Liga o chuveiro, dança um balé de alguns passos para um lado no intuito de pegar o xampu dentre as dezenas de cosméticos sobre as prateleiras. Após, emaranha-se na toalha creme, marcada com um ideograma chinês em sua borda, representando a paciência. Corre, já sabendo que perdeu a carona do colega Gerivásio, o qual passa pontualmente às 07h30min e não tolera atrasos. Pega o pacote de leite desnatado na geladeira; enche um copo de vidro estampado em peixinhos vermelhos, segura de duas em duas bolachas crocantes, arremessa-as à boca e bebe o leite em doses do modo que se tomam antibióticos em cápsulas.
Azafamada, checa o conteúdo de sua bolsa.
“Bem, está tudo aqui”.
Ao passar pela sala, desvia-se da rede de sua avó materna, Hildária, à qual roncava e bodeja uma frase ao sentir a ventania de sua neta. Ueverjânia responde: - De nada, vovó!
Ao sair pelo portão, acena para o chihuahua de pelos marrons e mancha branca na cabeça assemelhada a auréola dos anjos. O cão passeia acompanhado pelo dono - um albino que veste a camiseta 32 dos Los Angeles Lakers -, na pressa, esquece de cumprimentar Julian, o estrangeiro de sotaque português enrolado que mora logo ali. Talvez, o fato de o pequeno Namastê olhar para ela fazendo aquela velha posição de obrar; retraindo suas 02 patas anteriores, tenha-lhe chamado a atenção.
Na parada de ônibus, percebe que não havia pessoas. Agoniza-se: “será que algum ônibus passou há pouco? Estou muito atrasada!”
Em 03 minutos, o ônibus mostra seu topete laranja, surgindo em um aclive na pista bem antes da parada em que ela está. “Busão” só os cacarecos, com o tampo da frente do motor solto. Ela sinaliza apontando o dedo indicador para cima em diagonal. Movimenta a falange para cima e para baixo lembrando a cabeça de um calango. A "letreca” em forma de coletivo para. Ao subir, segura a barra lateral da porta. Leva um pequeno choque dos elétrons que partem do solo, os quais a esperavam para um passeio de montanha russa pelo seu corpo, em direção ao ônibus. Ao dirigir-se à roleta, vê uma criancinha conhecida pela janela e lhe envia um beijo pensando em voz alta: - Por que Marinalda não foi à aula hoje? Estará doente?
E escuta o cobrador de imensa unha suja do mindinho esquerdo, estilo Zé do Caixão: - Deve ser porque hoje é feriado!
De chofre, recebe outra carga elétrica em forma de sinapses, tomando outro choque em seu córtex cerebral. Os beijos entre dendritos e axônios faíscam no vasto e escuro campo mnemônico. As faíscas iluminam e seus estalos a fazem pensar e dizer: - Caramba! Hoje é feriado! Dia do trabalhador! Seu moço! Poderia abrir a porta traseira para que eu desça?
O cobrador pacientemente a responde: - Só após o pagamento da passagem!
O olhar de Uever fixa maquinalmente o aviso escrito na coluna do ônibus: TROCO MÁXIMO 20 REAIS. Então, ela responde:
- Mas, eu subi ao ônibus equivocada!
E ele: - Ah, é?! Eu mando o papo reto! Pague antes de descer!
Ela pega ligeiramente uma nota vermelha de 10 reais. Segura-a como se fosse uma varinha mágica apontada para o cobrador de pele áspera e olhar rude. Seu desejo é transformá-lo em um elefante com trombose. Paga e recebe o troco. Misto de ira e vergonha percorre seu semblante e estende um outdoor em seu olhar crepitante: "AI QUE ÓDIO!" Desvencilha-se do vômito amarelado no corredor. Chateada, puxa a cordinha manifestando a intenção de descer do ônibus.
Retorna para casa caminhando a distância suficiente para lhe fazer escorrer o lastro transparente de suor em seu rosto. Quando está trancando o cadeado chinês preto do portão sarapintado de ferrugem, Marinalda passa ao seu lado em sentido oposto. Cabelos loiros, crespos e assanhados pelo vento, a garotinha lhe sorri e acena com a mão espalmada. Seus 05 dedinhos se mexem como pontos de exclamação pontudos a lhe afrontar. É assim que Uever interpreta o gesto em sua frustração inquietante.
- Eu vi a tia dentro do ônibus! – A criança diz alegremente. A moça apenas sorri sem entusiasmo.
Vê o cachorro do vizinho com a língua molhada e gotejante estendida para fora pelo efeito da pareidolia*, e é iludida pela ideia de que o animal zomba em gargalhadas da vergonha de Ueverjânia em se sentir tola pelo ocorrido. Depois de trancar o cadeado, segue em direção à porta da casa murmurando consigo: - Menina lesada! Cachorro bobo!
Ao passar novamente pela sua avó Hildária, a moça escuta o bodejado rouco e os estalos de saliva, e lhe responde:
- Deus lhe pague!
*Fenômeno psicológico em que o cérebro humano cria ilusões. Veem-se imagens de faces humanas em objetos, formas de animais em nuvens, janelas etc.
POSFÁCIO
Idades das personagens:
Ueverjânia – idade representada na soma das consoantes repetidas nas onomatopéias.
Gerivásio - idade disposta na soma das horas.
Hildária - idade representada na soma dos minutos.
Julian - idade estampada na camiseta.
Cobrador de passagens - idade representada na soma dos valores monetários em reais apresentados.
Marinalda - idade representada nos dedos que acenam.
Namastê - idade representada nas patas acocadas.
Texto publicado na Revista Cruviana
http://issuu.com/jottapaiva/docs/cruviana_6
http://docshare04.docshare.tips/files/20723/207237810.pdf