FAROESTE CABOCLO - PARTE II

Essa é mais uma história igual a tantas outras por aí. É a história de João de Santo Cristo, o filho. Esse que nasceu de Maria Lúcia e Jeremias, mas que a cor da pele e os traços denunciavam a paternidade de outrem.

João, nascido de uma sina ruim, veio ao mundo sem pai de fato e de direito. Perdeu os dois em um duelo em Ceilândia. Sobrou-lhe a mãe, Maria Lúcia. Mulher guerreira que pelejava dia e noite nas casas de família, lavando, passando, cuidando dos filhos alheios enquanto o seu crescia órfão agora também de mãe.

Deixado aos cuidados de uns e outros, sofria em seu corpo de criança todo tipo de abuso. E, à noitinha, quando a mãe vinha buscá-lo, tinha sempre uma nova marca no braço, na perna, nas costas, no peito. Uma queimadura de ferro aqui, uma ferida de cigarro acolá. Diziam: “É um menino levado demais...” e mesmo diante de seu corpinho franzino, ousavam afirmar: “Muito agressivo...puxou ao pai. ”

A mãe sempre cabisbaixa, sempre calada, sofrendo de precisão...de comida, de roupa, de teto, não concordava, mas calava. No peito, o sonho da creche, aquela bonita, toda novinha, toda prontinha, lá em Águas Claras, bem pertinho da casa da patroa. Quem sabe, se Deus ajudasse, quem sabe...”Saía às cinco, puxando pela mão seu garotinho, pegava um ônibus em Águas Lindas e depois outro e depois o metrô, deixava o menino na creche e ia trabalhar. Lá, ele comia, dormia, aprendia...e, quem sabe até virava doutor, professor, ou uma pessoa qualquer, de bem. ”

Mas, aquele sonho que embalava Maria Lúcia no sacolejo do ônibus não se tornou realidade; ela não viu o filho doutor, muito menos o caminhão que segundos depois esmagou seus planos e seu corpo.

João ficou sem saber o que aconteceu. Maria não carregava nada de valor, e as chamas que se fizeram, consumiram sua identidade com seu nome escrito em pequenas garatujas, aquelas de quem só aprendeu a escrever depois de adulto.

Lá na invasão, diziam que ela abandonara o menino para se ajuntar com um mascate, ou um ambulante, ou sei lá, um traficante. Mas, era tudo conversa de homem que não aceita ver mulher sozinha, sem precisão de ninguém. As mães, essas não acreditavam naquelas histórias e contavam outras: de assalto, de estupro, de trabalho escravo, até de acidente, sinas comuns às mulheres sem arrimo ou proteção; destino daquelas que saem de madrugada, correndo atrás de sustendo no meio de um mundo cão.

A verdade é que o Conselho Tutelar acabou levando o menino para um orfanato. Lá, João conheceu o que diriam ser um ambiente familiar, e de tempos em tempos aparecia alguém espreitando, procurando, escolhendo de fato. Mas, João nunca foi escolhido. Ele até viu outros serem, bem poucos, é certo. Foi lá que João aprendeu já pequenininho que não era bonito e que ninguém gostava de sua cor. E chegou o dia em que ele não mais correu para a janela para ver quem vinha. Enquanto os outros arrumavam o cabelo e ajeitavam a roupa, ele continuava brincando com seus boizinhos de abacate. Enquanto os outros corriam para o pátio e sorriam entusiasmados, ele permanecia calado, contando as figurinhas que ganhara no recreio da escola. Enquanto todos voltavam cabisbaixos, ele folheava um gibi antigo que a professora lhe emprestou.

Muitos começaram a imitar o João; a “Ritinha ferrugem” não descia e ficava passando batom; o “Carlos manco” brincava, escorregando no tapete do corredor; também os irmãos Cleto, Clésio e Célio nunca desciam, apesar de bonitos, não queriam ser separados. Às vezes, ele ouvia a diretora Paola Aragão dizendo para os irmãos: “Saiam desse quarto senão vocês vão ficar pretos igual esse aí; tem uma casa linda esperando vocês! Qual o problema de morar separado, é só um ir visitar o outro”. Meses depois, ela mandou cada irmão para uma família diferente, ninguém sabia para onde eles foram, diziam que foram para o exterior.

Quando João de Santo Cristo completou 12 anos, definitivamente não guardava esperança alguma por adoção e sua vida no orfanato tornou-se um pesadelo. D. Paola o humilhava de todas as maneiras, colocava-o para ajudar na faxina, nos serviços gerais e dizia que o trabalho enobrecia o caráter, mas parecia que esse requisito era só para João, pois os outros meninos podiam viver sem isso. Ele não precisava mais se esconder, ela cuidava para que ele não fosse visto. Mandava-o ajeitar alguma coisa no depósito sempre que chegava alguém; e, quando ele surgia no pátio, pegava pelo braço o visitante e levava-o para outro lugar. Certa feita, João escutou uma mulher perguntar por ele, quando D. Paola desconversou e fez entender que ele não estava para adoção. Nesse dia, João foi dormir feliz, pensando que por trás daquelas maldades existia afeto. Mas, os beliscões, cocorotes, pisadelas, empurrões e chutes foram desconstruindo a ideia de amor que se erguera em seu coração. As palavras rudes, os apelidos horrendos, as piadas pejorativas teciam um desejo de liberdade em sua mente. Aquilo era bullying, como a professora ensinara, mas não havia como fugir daquela mulher que se divertia com o seu sofrimento.

Certo dia, João voltou tarde da escola, ficou perambulando pela praça central vendo “os meninos de rua” tomando banho no chafariz e correndo de um lado para outro. Aquilo lhe pareceu agradável, mesmo sabendo que muitos roubavam, usavam drogas, até coisas piores. Mas, eles não precisavam obedecer à ninguém a não ser a si mesmos, pensava.

Ao chegar no orfanato, à noitinha, foi recebido por D. Paola e um vigia novo; ela apenas acenou e aquele homem tirou o cinto e bateu em João com a disposição de quem busca o reconhecimento pela força. De madrugada, ainda sangrando, João partiu. Ninguém procurou por João, sequer sentiram sua falta; vez ou outra D. Paola, num ato falho, chamava de João a outro negrinho que cuidava da faxina agora. Corrigia-se, vez ou outra até não mais fazê-lo, pois não havia porquê; afinal, não eram todos aqueles, “joãos”?

Cinco anos depois, João era conhecido por “Santo Cristo”, traficante de renome. Vivia em Planaltina e distribuía drogas para todo o DF. Era apadrinhado por um empresário conhecido na região e distribuía seu produto para os boyzinhos de Brasília. E, tudo poderia terminar bem, não fosse a sina de seu pai se repetindo em sua vida; a mesma história. Na guerra entre gangs, a sua caiu. João estava prestes a passar mais de 20 anos atrás das grades.

Sem defesa e indefeso, João sabia que da vida fora vítima. Mas, como dizer, como contar a sua história, como fazer aquelas pessoas compreenderem que seu destino foi definido no ventre e quem deveria lhe proteger, lhe corrompeu?

Era o primeiro encontro com seu advogado; amuado no canto, João relembrava sua história. O rosto de sua mãe surgia nítido em sua memória e ele pensava que talvez fosse um sinal de sua presença. Ele nunca acreditou na história de fuga. Morte sim, violência também, acidente por certo. Mas, abandono, nunca.

Quando João se voltou para a porta, com algemas nos braços, cabeça raspada, sentiu-se como o índio daquela história que a professora leu na sala. Sentiu-se próximo do sacrifício; quis ser forte, corajoso, destemido. Mas, seu coração disparado denunciava o medo de um destino cruel: o cárcere, mais uma vez.

Uma jovem senhora estava à sua frente, cabelos brancos, feição gentil. Fez-lhe algumas perguntas e de repente olhou fundo em seus olhos e disse: “João de Santo Cristo, eu me lembro de você! Lá do abrigo, sempre cuidando de algo, limpando, arrumando. Gentil, educado, um tanto quanto calado. O que houve, João, para você vir parar aqui?

E, foi então, que engasgado com as palavras, João desatou a falar e chorar. E isso lhe pareceu tão bom que se sentia de volta ao lar, aos braços de sua mãe. Enquanto falava, aquela senhora anotava e acenava positivamente com a cabeça. Quando, enfim, ele concluiu, ela tinha os olhos marejados e num único suspiro disse: “Fique tranquilo, João. Eu vou contar a sua história e a justiça será feita.

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 30/04/2016
Código do texto: T5621111
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