PAIS E FILHOS*
Suava frio. O corpo todo tremia, chegava a sentir uma pontada fininha no peito. Mas não podia dar pala! Não podia dar pala! Continuava a quebrar a pedra de crack em pedaços menores e depois triturá-la bem fina para conseguir colocar a farinha resultante nos pinos. Meu Deus, há quantos anos não fazia isso! Quase 17 anos, a idade do desgraçado do seu filho! Ironia de merda. Havia parado justamente por causa dele. E agora o desgraçado traz essa porra para a sua garagem! E se a polícia entra aqui? Tudo perdido: emprego, família, liberdade, reputação. Moleque do caralho! Sabia que ele tava ficando na lojinha, vivia enchendo o saco dele para sair. Mas qual era a moral dele? Cheirava farinha que nem um aspirador, vivia entre os malandros, nunca tinha escondido de nenhum dos filhos que fumava maconha e também não se esforçava muito para que não percebessem que usava cocaína. Mas era um bom pai, se esforçara por isso. Nunca faltou nada em casa, sempre conversava com eles, contava o quanto sofrera, como era ser malandro... Porra! Nem conhecera seu pai, nem ninguém tomara o lugar. Sempre cresceu ao Deus dará. Não era para esses pirralhos darem certo? Mas não! Insistiam em fazer merda. Uma atrás da outra. Ele não tinha jeito, cresceu no meio do CEAGESP, aprendendo a arranjar dinheiro como podia. Às vezes trabalhando, outras roubando, outras aprontando. Ou tudo junto. A casa... Que casa? Um barraco de madeira onde o maior luxo era o chão ser cimentado. Naquele aperto morava com mais seis irmãos, um de cada pai. A mãe sempre trabalhando, vira e mexe de barriga. Nunca nem se preocupou de colocar eles na escola. Mas ele não, cuidou de todos, estudaram. Mesmo sendo filhos de quatro mães diferentes, de um jeito ou de outro colocou todos embaixo da sua asa... Puta que pariu! Era para ser diferente. Mas que nada, a mais velha já tinha uma filha e era uma vagabunda. Piriguete é como chamam agora. O seu segundo menino fez dois filhos numa sem-futuro da favela. Bem, o Jonathan era zé-povinho, mas trabalhador, não mexia com coisa errada, nem fumar, fumava. É verdade que tentou traficar uma vez. Mais foi só a coisa engrossar que ele pulou fora. É, pensando bem, esse era um bom garoto. Teria o que ele não teve, uma vida comum. Isso era bom. Mas meu! Aquela manada dos outros. SETE! 7 filhos! Além daqueles três. Tudo dentro da mesma casa. Todos ainda responsabilidade dele. Mesmo a mais velha e o Jonathan trabalhando, era ele que sustentava a todos, Graças a Deus a Nega cuidava como se fossem dela. Não fazia distinção. Isso ele não podia negar, a mulher era de fé! E cada um dava uma dor de cabeça diferente.
Tudo isso passava na sua cabeça como em um turbilhão enquanto fazia a parada, Seu filho estava junto do Dentinho, um cara das antigas que já tinha roubado e traficado com ele. O cara fora tão ponta firme. Lembrava de uma vez, que viram uma viatura na entrada da favela, lá embaixo, subindo. O Dentinho, de repente:
-E aí Nil, vamô fazê o coração disparar!
Ele tremendo, com dois trinta e oito no cinto:
-Sê não tá pensando em... Antes que pudesse terminar de falar o Dentinho sacou a quadrada e mandou bala em cima da viatura. Os dois saíram correndo que nem loucos, parecendo fita de cinema. Um pulava um muro, metia bala nos vermes enquanto o outro pulava e metia bala para o amigo pular outra vez! Assim até despistar os homê. Dava para escutar o som das balas passarem ao lado deles, zunindo... Meu, que cena! Esse era um dos caras que a maldita da pedra tava arrebentando. Ultimamente só dava rata, virou ladrão de varal, vapor de lojinha. A última foi essa! Trazer a porra do seu moleque para preparar 300gs de crack para vender na sua garagem. Com a porcaria da família em casa! Ele só podia tá de tiração ou então o negócio comeu o juízo dele. Mas assim que a situação passasse iria puxar a orelha dele com força. Não sei não se não ia levar para os irmãos. Mas os caras iam pegar pesado, já tinha um monte de buchicho no nome dele. Ah, depois via. No final tinha dó. E também se levasse para eles, ficaria devendo mais uma e era capaz de chamarem ele de novo para ficar de Sintonia* da quebrada. Aí era só problema, só merda! Podia ganhar dinheiro, mas era maldito. E era convidado cada vez que ele ia advogar para alguém não morrer ou outra coisa... Melhor deixar quieto.
Mas que vontade de arrebentar a fuça do Dentinho! O cara preparava um pouco, dava um pega e já tava olhando no telhado para ver se os caras desciam de helicóptero. Uma sombra, uma comédia do malandro que ele conheceu. Ah! Mais se desse merda por causa dele, lá dentro eles iam se acertar! Só que agora tinha que ir na manha:
-Ô Dentinho, vai com calma aí, sê já fumou metade do lucro. Do meu não vai sair! Olha mais pelo buraco, depois é só sair com um cartaz:tô pipando!
Vontade de dar um tapão no pescoço!
Mas o Chuck!!! O Chuck... Não tinha a menor ideia do que ia fazer com ele. Na hora que entrou na garagem ficou simplesmente sem ação. A primeira vontade foi sair dando bordoada nos dois. Mas de repente veio a lembrança do João. Das conversas deles. E ele, para sua própria surpresa, só falou sério e triste:
-Não podia ficar só na lojinha, né Chuck?
Ele mesmo sentiu a tremenda decepção na voz. Sentou, pegou um pedaço e começou a trabalhar. Quase em um sussurro, se contendo,disse:
-Eu vou te ajudar desta vez,mas se é isso o que você quer, arranje outro lugar para morar.
Era difícil segurar as lágrimas. Só conseguia lembrar de uma das últimas conversas com o João. Ele contou como usava drogas com o seu pai e o quanto o culpou por tudo. E que hoje, pai também, sem forças para largar o vício, percebia como devia ter sido difícil para o dele. Que um dia o chamou na sua casa e pediu perdão por todas as acusações que tinha feito. E o João era nóia! Meu, tava para conhecer um cara mais louco que aquele. Quando pegava a danada não via nada. Chegava na favela todo boyzão e saia dois dias depois pior que um mendigo. Mas, meu, gostava do cara! Quando ele ficava desesperado por causa do Chuck, trabalhando na biqueira, marcando de tanto lança-perfume e farinha, ele ficava o tempo todo ao lado dele e o acompanhava quantas vezes fosse para andar na favela atrás dele. Não era só isso. Todo mundo vivia tirando o cara porque ele não tinha limite. Mas como o fulano era inteligente! Quando conheciam alguém e ele estava bom, acertava na hora qual era a do sujeito. Foi seguindo o conselho dele que se afastou do Júlio. O cara rodou bonito. Avisou que tinha muito carro de serviço telefônico no pedaço e que os cana iam fazer uma limpa. Não deu outra, até seu primo Almir rodou. Ele ficou encanado e tirou todos os B.O.s de casa. Na mesma noite invadiram sua casa. Por muito tempo achou que ele era ganso. Mas as atitudes não batiam, ele era tão trouxa. Além do mais o cara tinha emprego fixo, esposa, filhos. O método dele para não se afundar era, era... Sabe lá o quê era! Ele deixava todo dinheiro na mão da esposa e essa só liberava o suficiente para ele ir trabalhar e comprar cigarro. E só com isso ele fazia tanta merda! Mas não tinha um assunto que ele não conhecesse! Muitas vezes lhe disse:
-João, como você consegue ser tão inteligente e tão burro?
Ele sempre respondeu de uma forma que não conseguia entender:
-Você sabe da vida por vivê-la, eu por ouvir falar.
Ele o olhava e escutava suas histórias com tanta admiração. Muitas tardes e noites ficaram vagando pela favela aprontando. Mesmo com os vacilos que ele dava, até o Chuck o respeitava. Nunca soube o que eles conversavam. E ele era que sempre o fazia ver o lado do filho, de como por mais que fosse aconselhado ia continuar fazendo merda. Que ele na verdade queria ser como ele mais que nunca ia conseguir pois não tinha passado pelo mesmo caminho. Ele dizia:
-A experiência é pessoal e intransferível. O que nós vivemos pode servir de base para que outros tomem decisões. Mas só se eles quiserem ouvir ou tiverem um mínimo de experiências parecidas para fazerem um paralelo. Oh cara pra gostar de falar difícil. Mas ele contava como uma vez o pai dele tinha aprontado uma grave. Esperando ser morto pela manhã comprou muita droga e ficaram usando a noite toda. Ali ele teria falado para o João quanto tinha sofrido na malandragem e na cadeia. E deste jeito fez o filho estabelecer certos limites. Não roubava, não traficava, não se envolvia com pessoas que faziam isso. Como queria que isto funcionasse com seu moleque. Quantas vezes contou a estória de quando tinha abandonado o tráfico, ele pequeno e a mãe dele já grávida de outro, de como estava fumando um baseado com uns amigos e chegou um senhor, entrou no barraco em que estavam e foi falando:
-Olha aqui gente eu não tenho problema com ninguém aqui. Mas este safado me deve! Sacou um revólver e deu quatro tiros a queima-roupa no coitado. Como saiu correndo para casa e se escondeu dentro do barraco deles que não tinha luz. Agarrado nele e em sua mãe ouviu o cara dizendo:
-Tem homem aí dentro? Se tiver vai morrer! De como abraçou forte o filho pensando ser seu último momento. Até ouvir o som de alguém caindo no barranco ao lado. E depois só o som da calibre doze disparando. De como o corpo ficou dois dias esperando a polícia vir tirar. O coitado ali, com um buraco do tamanho de uma bola de futebol no peito. Mas adiantava? Quantas vezes viu o Chuck chapado de lança na biqueira e só não encheu ele de pancada por causa do João? Das palavras ou da presença.
Era uma amizade estranha. O sentimento também era estranho. Conseguia confiar, falava com ele da sua relação com a Nega, suas brigas, suas tristezas, seus medos. Contou como matou um paraíba que mexeu com a sua irmã com quinze anos. Como teve que fugir de casa e passar anos vivendo com aquele medo e aquela lembrança na cabeça. Algo que ele nunca tinha contado para ninguém! Ele falava dos dele também. Mas os dele pareciam se resumir no quanto queria parar de usar crack e quanto ele era humilhado por todos, principalmente pela esposa, e mesmo assim não conseguia. Da desilusão de ter conseguido sair de casa, onde todo mundo usava, trabalhar e estudar, fazer e aprender tanta coisa sem pirar o cabeção e agora simplesmente não conseguir. Eles tinham até música, andavam pela favela cantando juntos: Outro dia caminhando pela rua, eu lembrei de como a gente era feliz, quase tudo era motivo para sorrir, você se foi e eu não sei o quê eu te fiz. Perguntam por você, não sei o quê dizer. Sem ter o que falar eu tento me explicar:digo eu já fui lá,bati, liguei, deixei recado na caixa postal, não sei não mais vi
Foi quase como uma profecia, um dia ele estava bêbado, tomou um pau do dono de um boteco e desapareceu. Ele esperava que tivesse conseguido parar, mas duvidava. Devia estar indo em outra quebrada. Mas fazia uma falta tão grande, um vazio que nada preenchia...
Finalmente o serviço acabou, juntaram todos os pinos, contaram, ensacaram e o Chuck pegou a bicicleta para entregar a parada. De repente ele se virou e disse:
-Pai, desculpe. Essa foi a primeira e a última. Eu te amo pai!
E se abraçaram. Ele se foi pela rua enquanto as lágrimas rolavam pelos olhos dele. Até vê-lo parar um pouco mais a frente e cheirar um lança-perfume de um malandro...