Mundo girando
Carro simples passando por uma avenida tranquila pela manhã. Dois caras com pinta de Vincent Vega dentro.
- Não aguento mais esta política fascista.
- Apaga isso.
- Existe uma política em curso de exploração e marginalização dos viciados.
- Que? Do que você tá falando?
- De pagar por todos os pecados da humanidade. Do preço do cigarro, da cerveja, da loteria, do puteiro. Garota de programa tá tendo que pagar 25% de imposto. Para ganhar alguma coisa ela esta tendo que dar um quarto da bunda para o governo.
- Cala a boca e apaga esta porra!
- Olha só a marginalização. Você esta se excedendo por causa de um simples cigarro.
- Vai se foder. Não quero que fumem no meu carro. Só isso. Apaga esta porra!
- Não estou fumando, só esta aceso.
- Porra!
Estacionamento da faculdade movimentado. Galera da Sally Sanders em volta de um carro com as portas abertas e uma música tocando.
- Não aguento mais as pessoas jogando suas frustrações em cima dos outros. É muita imaturidade.
- Sério que o assunto ainda é este?
- Qual?
- Você, o Andrew e o drama da sua vida.
- Do que você tá falando? Porque você tá falando esse nome para mim? Tô falando da discussão que está rolando no what's da foto da menina pelada desmaiada que o outro menino colocou na net.
- Não estou sabendo. Um cara postou uma foto de uma mina pelada e isso abalou os alicerces da sociedade moderna?
- Calma aí, não foi assim. A mina tava notavelmente apagada pelo excesso de alguma coisa. Tem umas fotos do cara com o pau na cara dela. Foda. Sei lá. Ficou parecendo estupro. Olha aqui.
- Foi aqui isso?
- Parecendo não, com certeza foi.
- Não, acho que na Inglaterra. Alguém sabe da onde vem isso? Quem postou no grupo?
- Fui eu. Apareceu no grupo de uns camaradas da minha cidade. Quem te disse que foi na Inglaterra? Acho que foi aqui no Brasil mesmo.
- Sei lá. Pelos móveis do quarto, a cara da mina. Não parecia o Brasil.
Sala de aula com imagens de Da Vince e mapas pela parede. Professor Girafales falando para alunos do naipe Timão e Pumba.
- ...por isso vamos tentar fugir do senso comum e falar da educação pública sem citar os problemas de sempre. Sala de aula cheia, carteira quebrada, alunos apáticos ou desinteressados, falta de material escolar, ambiente caótico, estas coisas. Vamos pensar que tudo isso não pode ser empecilho para um bom professor. Vamos pensar na escola como meio para construção do conhecimento a partir da desconstrução da realidade. Num espaço para discussão e interação social, desenvolvimento humano.
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- Estas ideias lembram alguma das teorias do bielorrusso Lev Vygotsky. Alguém já viu alguma coisa sobre ele?
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- Vygotsky viveu no começo do Séc. XX, tendo se destacado nas décadas de 20 e 30. Para ele o domínio da linguagem do meio sociocultural onde o indivíduo esta inserido é fundamental para o seu desenvolvimento social e psicológico. Seguindo mais adiante em sua vasta obra veremos que professor e aluno tem que ter o domínio da mesma linguagem para que o processo de construção de conhecimento seja concluído com sucesso. Esta ligação entre professor e aluno foi chamada por ele de obuchenie. Isso é, para que aja uma relação interligada entre professor e aluno os dois devem ter o domínio da linguagem do meio sociocultural ondem estão inseridos. Dentro desta linguagem se destacam os símbolos deste...
- É aula do que mesmo?
- Psicologia da educação.
Escada do corredor das salas de aula. Umas espécies do tipo Travis Bickle conversam enquanto fumam um cigarro.
- Não aguento mais estes maconheiros fumando essa droga em qualquer lugar. Isso não é crime!?
- Estes imbecis tinham que ser presos e exterminados. Bando de vagabundos.
- Hahahahahah.....
- Falando sério, isso é crime. Porque estes cretinos ficam fumando por aí como se fosse permitido? Porque ninguém prende estes filhos da puta?
- Parece que descriminalizaram.
- Descriminalizaram porra nenhuma. Isso é papo.
- Este povo não quer fazer nada e acha que alguém ainda tem que pagar por isso. Daqui a pouco vão estar querendo mamar nas tetas do estado de alguma forma. Bolsa maconha, sei lá.
- Não entendo como a Paty entrou nessa. Ela é bonita, inteligente, não tem nada a ver com estes marginais.
- Vai ser mais uma prova de como esta droga pode destruir a vida de alguém. Daqui um tempo você vai ver ela zumbizando por aí e dando a bunda por uma pedra.
- Sei lá, entrou nessa por que quis. Agora tem que se foder grandão para aprender.
- São uma raça de merda. Cade os pais destes babacas? Eles são os culpados desta merda. Com certeza devem estar fazendo mais merdinhas, porque também são uns vagabundos.
- Por isso o Brasil esta nessa merda. Todo mundo faz a merda que quer e ninguém fala nada. O que esta faltando por aqui é cadeia.
- Não tem que prender. Tem que matar!
Cantina. Turma da Mônica sentada em volta de uma mesa de plástico com a marca de uma empresa de cerveja.
- Aí, não aguento mais vir aqui.
- Verdade. Um monte de gente que não quer nada com nada.
- Você viu na aula de Inglês? O professor tentando explicar com a maior boa vontade e o Valadão fazendo um monte de perguntas idiotas. Querendo saber tradução de música. Isso atrapalha.
- Não sei o que este povo vai fazer da vida quando acabar a faculdade. Isso é, se acabar.
- Se não sabe de nada. Um monte deles tem notas melhores que as nossas. O Renton tem até bolsa de iniciação científica, sabia?.
Como pode? Um monte de gente que estuda, se esforça, tentando e não consegue, e ele, que fica dia e noite atrás de bagunça por aí, consegue?
- Também não entendo.
- Sei que tenho que tomar cuidado para não perder a minha. Fiquei fazendo relatório o fim de semana inteiro, mas o professor Caxias acha que precisa de mais. Trinta e sete páginas é pouco para ele. Não sei mais o que escrever. Vou ter que encher lingüiça.
- Eu encho de citação. Os meus tem pelo menos uma por página, mais nota de rodapé. Tem que ganhar espaço, querida. Meu orientador não fala nada.
- Faço tanto isso que daqui a pouco meu trabalho vai ser plágio.
- Se for tudo bem, ninguém lê.
- Hahahahha......
- Hahahahha......