MÃOS*

Havia meia hora que o carro parecia atravessar um enorme laranjal. Isto porque estavam a 120 km/h, a velocidade máxima permitida.

- Querido, vai demorar muito para chegar?

- Até Mirassol ainda vão umas três horas.

- Mas já estamos viajando há quatro!

- Pois é.

Caiu em seu costumeiro mutismo.

Soltou um suspiro. Queria conversar. Mas isto estava além das capacidades do marido. Virou-se e olhou para as filhas adolescentes no banco de trás. As duas de tablet na mão e fone no ouvido. Não podia cobrar muito. Vieram arrastadas.

Resolveu mudar a música do toca-fitas. - Meu Deus! Que coisa antiga! Quem usa essa expressão hoje em dia?. Sorriu ao lembrar de um post do Facebook que mostrava uma fita k7 e um lápis. Nela os dizeres:-"Se você sabe a relação entre esses dois objetos, está ficando velho".

Silenciou "American Pie", de Don MacLean. Já escutava esta canção repetidamente há pelo menos duas horas. Preparava uma aula sobre a reação contra a Revolução Cultural das décadas de 60 e 70 nos Estados Unidos e usava a música para se inspirar. Seu refrão era:

"So bye-bye, miss american pie.

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry

And good old boys were drinkin whiskey and rye

Singing' "this'll be the day that I die"

"This'll be the day that I die"

"Como eu gostaria de acabar?..." Balançou a cabeça para afastar o pensamento lúgubre. Mas era difícil não relacionar as coisas. A canção falava da decadência de uma cidadezinha do meio-oeste americano frente ao novo mundo que se apresentava. Por mais progressista que fosse, admirava a atitude: Sempre vivi assim e é assim que quero morrer.

Colocou uma sonata de Vivaldi. Uma justa homenagem a tia Henriqueta, que era o motivo desta viagem à terra natal. Por si mesma não voltaria nunca. A pobre, sempre tão lúcida, agora há anos em estágio avançado de Alzheimer. Até a pouco tinha-se rodiziado de casa em casa. Mas seu cuidado então se tornara pesado demais e a colocaram em um asilo. Era necessária a assinatura de todos os parentes próximos para as autorizações e divisão das responsabilidades e propriedades. "Espólios" , pensou cinicamente. Cada um já tinha pego o que queria. Só faltava vender as três casas. Mesmo a tia tendo uma boa aposentadoria e os aluguéis, ela costumava contribuir com uma boa soma para quem estava encarregado de cuidá-la. Mas tinha certeza que era vista como ingrata e sem coração. Afinal nunca havia ido visitá-la. Quando criança e adolescente sempre fora a mais próxima. Até seguira seus passos como professora de História. Só não ficou solteirona.

Culta ao extremo, magérrima, sempre elegante, viajada. "Um nojo" segundo sua mãe. Seu ideal de pessoa na juventude. Com ela aprendeu a gostar de poesia, literatura, filosofia, artes plásticas, música de vários gêneros. Lembrava com especial carinho de suas mãos. Finas, delicadas, alvas. Como elas se moviam com delicadeza no ar enquanto lhe revelavam os mistérios do mundo.

Ela mesma dava muita importância às mãos. Dizia que os rostos mentiam, as mãos não. Quem dera a tivesse escutado. Lembrou do primeiro marido, o pai das suas duas filhas. Conheceu-o na faculdade. Culto, mãos delicadas. Fortuna herdada, mal se casaram pôs tudo a perder. Chegaram a passar fome. Os tios dele os ajudaram. Mas viu que ali não havia futuro. Só que até aí já havia brigado com a família inteira pela sua "grande paixão". Orgulhosa demais, não se esforçou para reatar boas relações. Também não perdoou a tia por tê-la julgado pelos mesmos padrões que os outros. O segundo tinha as mãos mais firmes, mas com várias cicatrizes. Foi um grande romance com vários episódios de violência doméstica. Demorou a entender que ciúme doentio não era amor. Mas esse relacionamento só aumentou a distância entre elas. Agora acreditava ter aprendido. Olhou para as mãos que estavam no volante. Enormes, ásperas, cheias de calos. Foi a primeira coisa que notou quando foi trocar o piso da casa. Mestre de obras, fez aquele serviço sozinho por estar sem funcionários. Deu um pequeno sorriso. A dondoca que seduziu o pedreiro. Daria um belo conto erótico. Tratava-a com carinho, era responsável. Ganhava bem, não era sovina nem perdulário. Não era culto, mas era sábio. Sofrera muito nas mãos da primeira esposa, uma boa bisca. Sentia por ela uma admiração absurda, devido a sua instrução, o que a deixava profundamente envaidecida, já que o admirava também. Não era apaixonada. Mas também não era mais moça.

"Parou, parou, parou! Este tipo de pensamento nunca chega a bom termo". Procurou acompanhar a cadência da sonata. Isso lhe trouxe à memória a aula mais famosa de Henriqueta. A do slide da pintura de Rafael, A Escola de Atenas. Usava-o para a ensinar sobre a Grécia, sobre Antiguidade Tardia, Renascimento, Filosofia, História da Arte. Todas as matérias que acumulava na escola. Realmente era de uma beleza e riqueza tamanha que se prestava a isto e muito mais. Foi uma enorme sacada do pintor colocar todos os filósofos pagãos da Antiguidade em um único afresco. Mas ainda deixar Platão e Aristóteles no centro. Em cada uma delas ela apresentava detalhes novos. O que nunca mudava era sua fala sobre as mãos:

- Reparem a importância que o artista dá as mãos. Sócrates, que inventou o método dialético de se argumentar, foi pintado com suas mãos posicionadas como se conversasse. Ele nunca escreveu nada e esta era a sua forma de ensinar, conversando. Os matemáticos estão escrevendo. Platão está com sua mão apontando para céu, enquanto Aristóteles a tem com a palma estendida para o chão. Evidenciando assim a diferença entre suas filosofias. São, grosso modo, as duas maiores correntes filosóficas do Ocidente até hoje. Ou se é platônico, ou se é aristotélico...

-Chegamos a Mirassol. A fala do marido a trouxe do seu devanear. Nem reparara que tinha voltado a outrora sua cidade. Insistiu que fossem primeiro ao asilo. Já estavam avisados na instituição, então não tiveram problemas para entrar. Quando a viu teve um choque. Não era tia Henriqueta que estava ali. Nem a sombra e nem um quadro dela. Nenhuma descrição a haviam preparado para aquilo. A expressão triste, os olhos parecendo fitar o vazio, as roupas em desalinho. Sentou-se e pegou em suas mãos, agora parecendo ser feitas de algodão. Colocou seu rosto sobre elas e chorou por pelo menos uma meia hora.

O marido e as filhas apenas a observaram de longe, em um silêncio respeitoso.

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 15/04/2016
Reeditado em 04/11/2024
Código do texto: T5605601
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