Sobre ser mulher
Quando a menstruação de Alice não chegou no dia certo, ela não se preocupou tanto assim. Para ela era normal atrasar um pouco. Estava no 31º dia do ciclo e, segundo seus cálculos e livros de biologia, ainda tinha mais quatro dias pela frente até que a situação começasse a ficar preocupante.
Além disso, apesar de não tomar anticoncepcional, Alice sabia se cuidar. Era uma garota bem informada e instruída, e tinha certeza de que ela e Marcelo haviam se protegido o tempo todo. Não havia motivos para ficar paranoica.
“É uma droga ser mulher.”, pensava com frequência. Entre uma cólica e outra sempre acabava praguejando contra as mazelas do mundo feminino. “Dói na primeira vez, dói na depilação, dói para parir e até mesmo para não parir, dói!”. Seria muito mais fácil ter nascido homem. Eles não têm que se preocupar com tabelinhas, pílulas, nem com a possibilidade de ficar grávida toda vez depois de “dar umazinha”.
Alice não queria ter filhos, não queria nem se casar. Odiava compromissos e não tinha a mínima paciência com crianças. Sua mãe dizia-lhe que era muito jovem, que seu pensamento mudaria, mas Alice duvidava. Tinha um irmão menor e isso já era o suficiente.
Ela odiava o fato de não ter opções para se prevenir com 100% de segurança. Quer dizer, não podia retirar os ovários ou remover o útero cirurgicamente, porque, apesar de os órgãos serem seus, a sociedade não lhe permitia fazer o que quisesse com eles. Tudo bem, ok, entendia. Essas seriam mudanças muito radicais e que provavelmente afetariam todo o seu corpo. Mas nem mesmo uma laqueadura era possível! Que médico concordaria em esterilizar uma fêmea jovem e saudável? Afinal, sua única função no mundo é parir, não é mesmo?
Alice gostava de iludir-se com o pensamento de que, se engravidasse, poderia pagar uma boa clínica clandestina de aborto, porque era privilegiada pela situação financeira de sua família. Mas odiava o fato de que outras mulheres não teriam a mesma sorte. A ilegalidade do aborto e a pobreza as empurrava na direção contrária ao limpo e adequado hospital, diretamente para os riscos altíssimos do açougue, da tesoura, ou mesmo do cabide de aço. Enquanto isso, os homens podiam seguir tranquilamente com suas vidas.
Aliás, essa tal ilegalidade do aborto era mesmo uma palhaçada. Que estado, por mais soberano que fosse, deveria ter o direito de forçar uma mulher a gerar um filho que ela nunca quis?
Pois bem, os dias foram passando. Até que Alice acorda na manhã do 34º dia do ciclo com a calcinha intacta, sem vestígio algum de sangue. Já era hora de ficar preocupada.
Não, não era possível que ela e Marcelo tivessem deixado escapar algum cuidado. Além do mais, Marcelo avisaria se alguma camisinha tivesse estourado, não é?
Se bem que... naquela hora em que estavam tomando banho juntos não haviam usado proteção, mas ele nem chegara a penetrá-la em nenhum momento. Alice subitamente lembrou-se de uma conversa com o ginecologista, em que ele dissera haver uma pequena, porém inegável, chance de ocorrer fecundação, ainda que sem a exata penetração do órgão masculino. Então, talvez...
— Posso estar grávida. — disse ela a si mesma, e as palavras ecoaram de maneira sinistra pelo vazio do quarto em penumbra.
Passou o dia pensando em mil coisas aterrorizantes.
Pensou em seus meros 18 anos, na faculdade que acabara de começar, em Marcelo, a quem mal conhecia e por quem não estava nem um pouco apaixonada, em seus pais, cujo maior desapontamento seria ver a filha de ouro destruir sua vida perfeita por causa de um feto indesejado.
Pensou até mesmo em Ana Luiza, a garota da sua classe que estava grávida aos 19 anos, do ex-namorado que a abandonou assim que soube. Alice lembrou-se de como sentia pena dela e de como sentia que seria horrível estar em seu lugar. Imediatamente imaginou-se andando pelos corredores com uma barriga enorme, com todos aqueles olhares penosos e inquisidores olhando para ela de cima a baixo.
No dia seguinte, Alice chorou. Sua mãe a pegou chorando no banheiro e, preocupada, indagou o motivo.
— Estou de TPM. — mentiu Alice.
Passou o dia encarando o Google. Seus dedos pareciam mover-se sozinhos pelas teclas e logo seu histórico de pesquisa já era mais do que suspeito, com a palavra “aborto” aparecendo inúmeras vezes.
Chás abortivos não funcionam. Cytotec não é um medicamento acessível e não garante completamente o serviço. Clínicas abortivas não publicam seus endereços, ou seja, você teria de conhecer alguém que já tivesse feito para ficar sabendo de alguma. Adoção à brasileira também é ilegal.
Não havia opções. Alice nunca se sentiu tão menos dona do seu próprio corpo quanto naquele momento.
O que lhe restava? Suicídio?
Não pode dormir, e no outro dia levantou antes que todo mundo para correr até a farmácia mais próxima.
— Oi... Tem alguma mulher que possa me atender? — perguntou timidamente ao farmacêutico sonolento atrás do balcão.
Ele lhe lançou uma olhar como se soubesse o que ela havia feito no verão passado e desapareceu entre as fileiras de caixas de remédio. Logo foi substituído por uma simpática atendente.
— Você pode me ver um teste de...? — Alice engoliu a palavra, como se fosse errado dizê-la.
— Gravidez? — sorriu a mulher.
Minutos depois, Alice correu para casa sabendo que não pisaria naquela farmácia durante um bom período de tempo.
Trancou-se no banheiro.
Leu as instruções cuidadosamente e inúmeras vezes. Aquilo era totalmente desagradável. Mije num potinho limpo e mergulhe a fita do teste na urina por 10 segundos, depois espere 5 minutos e voilà. Se tiver dois tracinhos vermelhos na fita, parabéns, você tem uma larva humana crescendo dentro de si. Era como fazer exame para alguma doença. Aliás, Alice se sentia exatamente assim, doente.
Não gostava nem um pouco de menstruar, de fato, mas tinha de admitir que não menstruar era pior ainda. Era como se... não estivesse saudável. “Mulher serve pra isso: parir e sangrar, sangrar e parir. Se você não faz um desses dois, tem algo de errado com você”.
Deitou-se no sofá da sala para esperar o teste e logo descobriu que essa era a pior parte. Os segundos se arrastavam como lesmas e o cansaço da noite mal dormida começou a carrega-la para os braços de Morfeu. Concluiu que tirar um cochilo faria o tempo andar mais rápido, então se rendeu.
Em seu subconsciente, ouviu um choro de criança. Frases soltas ecoavam em seus ouvidos e alguém dizia: “É uma menina!”, “Ela é linda.”. Um nome ficava se repetindo incessantemente durante o sonho: “Lena. Lena. Lena.”.
Alice acordou para ir direto ao banheiro verificar o veredito. Sentiu falta de ar por alguns instantes ao segurar a fita diante dos olhos.
Negativo.
— Um traço significa “sem larvas humanas na barriga” — sorriu.
Estava aliviada.
Não podia suportar a ideia de colocar mais uma mulher para sofrer no mundo.