Ela não podia mais tocar o rosto flamejante das estrelas, senão com o olhar pedinte de um vira-lata esfaimado diante do odor penetrante do alimento ainda a ser oferecido. Que restava, então, da beleza incandescente daquele ancestral céu, se o roçar de seus dedos perdera o fôlego, a coragem de apalpar, de desvendar fagulhas? Se as mãos dormentes se aquietavam na fraqueza e no tremor das contradições?
O que estava acontecendo? Aquele alternar-se incompreendido, devagarinho veio se desvendando, demudando aos poucos, suas partes, ora adágio, ora alegro. Ora pianíssimo, ora fortíssimo, até ver-se ali feita música cheia e mansa a vaguear sem pressa. A xícara, apoiada na toalha branca sobre a mesa, fumegava. Dentro, a química quase insuportável da canela e do mel, recendia cumplicidades. A afinidade mútua entre aqueles elementos ali era absurdamente real. Realidade pesada que mordia com violência suas lembranças, grudadas no avental de sempre, na chita estampada e rala do vestido envelhecido, nas paredes mudas, no vento chispante que sem pudor algum avivava ainda mais aquele embriagado dia.
Olhar sem destino, ouvia-se, em silêncio. Valia a pena, essas e outras coisas, concretas e cortantes, feito um espigão de vidro de garrafa estilhaçada? Ver de ver tudo ali, espichado pelos cantos, cobrindo outros cantos de serventia antecipada. Tantas coisas mofando nas gavetas, sem um tantinho sequer de segredo? Sem um tantinho sequer de viveza, de astúcia, de mentirinha? Daquelas mentirinhas inventadas, de verdades sem importância alguma, que doíam, de assim dizer, de certa ardência passageira, esquecidas rapidamente em algum retalho do tempo? Ah, o tempo, sempre! Qual serventia daquelas coisas? De que valia a dureza daquelas coisas? Que valor tinha a rigidez perpétua da realidade, da exatidão que a cingia? Ela, de que valia sem as estrelas? Apenas uma porção a mais de coisa finda. Não mais.
O gosto agudo da canela envolta no doce, mais abrasador que a água fervente, queimava um pouco. Apimentava a saliva, aquecia o estômago, aquentava os pés do frio que chegava invadindo janelas e portas que nada impediam. Era bom aquele gosto, o cheiro, o frio. Pequeno e fortuito tesouro mal avaliado, talvez. Mal-agradecido. Astuto mensageiro de bucólica felicidade, que sorri sem consentimento. Felicidade imprópria, macerada por outro bem-querer, muito mais vivo, muito mais consistente. Um bem-querer-saudade-só.
Desligou a insistência. Por instantes, não mais do que um momento de pequeno prazer, que relampejou dentro da noite. Pé ante pé, foi atrás daquele lampejo surpresa. Uma pausa, mais um gole. Ai! sentir o gosto daquele chá era como pensar nas estrelas. Só pensar. Imaginá-las acesas no esticar lento das noites infindas. Adivinhá-las a qualquer distância, de qualquer lugar, a qualquer hora sem carecer de chão, nem de céu. Descobriu-se, de repente, nesse outro e novo saber. Diferente, a ser construído, ainda, gole a gole.
E foi esse saber, tão pequeno, tão pouco, tão frágil, tão simples, que a fez fechar os olhos e animar o fogo. Lá fora, a vastidão, limpinha.
O que estava acontecendo? Aquele alternar-se incompreendido, devagarinho veio se desvendando, demudando aos poucos, suas partes, ora adágio, ora alegro. Ora pianíssimo, ora fortíssimo, até ver-se ali feita música cheia e mansa a vaguear sem pressa. A xícara, apoiada na toalha branca sobre a mesa, fumegava. Dentro, a química quase insuportável da canela e do mel, recendia cumplicidades. A afinidade mútua entre aqueles elementos ali era absurdamente real. Realidade pesada que mordia com violência suas lembranças, grudadas no avental de sempre, na chita estampada e rala do vestido envelhecido, nas paredes mudas, no vento chispante que sem pudor algum avivava ainda mais aquele embriagado dia.
Olhar sem destino, ouvia-se, em silêncio. Valia a pena, essas e outras coisas, concretas e cortantes, feito um espigão de vidro de garrafa estilhaçada? Ver de ver tudo ali, espichado pelos cantos, cobrindo outros cantos de serventia antecipada. Tantas coisas mofando nas gavetas, sem um tantinho sequer de segredo? Sem um tantinho sequer de viveza, de astúcia, de mentirinha? Daquelas mentirinhas inventadas, de verdades sem importância alguma, que doíam, de assim dizer, de certa ardência passageira, esquecidas rapidamente em algum retalho do tempo? Ah, o tempo, sempre! Qual serventia daquelas coisas? De que valia a dureza daquelas coisas? Que valor tinha a rigidez perpétua da realidade, da exatidão que a cingia? Ela, de que valia sem as estrelas? Apenas uma porção a mais de coisa finda. Não mais.
O gosto agudo da canela envolta no doce, mais abrasador que a água fervente, queimava um pouco. Apimentava a saliva, aquecia o estômago, aquentava os pés do frio que chegava invadindo janelas e portas que nada impediam. Era bom aquele gosto, o cheiro, o frio. Pequeno e fortuito tesouro mal avaliado, talvez. Mal-agradecido. Astuto mensageiro de bucólica felicidade, que sorri sem consentimento. Felicidade imprópria, macerada por outro bem-querer, muito mais vivo, muito mais consistente. Um bem-querer-saudade-só.
Desligou a insistência. Por instantes, não mais do que um momento de pequeno prazer, que relampejou dentro da noite. Pé ante pé, foi atrás daquele lampejo surpresa. Uma pausa, mais um gole. Ai! sentir o gosto daquele chá era como pensar nas estrelas. Só pensar. Imaginá-las acesas no esticar lento das noites infindas. Adivinhá-las a qualquer distância, de qualquer lugar, a qualquer hora sem carecer de chão, nem de céu. Descobriu-se, de repente, nesse outro e novo saber. Diferente, a ser construído, ainda, gole a gole.
E foi esse saber, tão pequeno, tão pouco, tão frágil, tão simples, que a fez fechar os olhos e animar o fogo. Lá fora, a vastidão, limpinha.