Um conto de aniversário

Um conto de aniversário.

Acordou com aquele gosto de plástico na boca. Ainda de olhos fechados listou mentalmente o que faria do seu dia. Certamente não faria nada muito complicado ou que exigisse dela muito esforço físico. Levantaria da cama, tomaria um bom banho e prepararia uma bela caneca de café fumegante. Amava café. O pensamento do café a fez viajar a tantos anos passados e podia mesmo sentir mentalmente o cheiro poderoso da bebida vindo da cozinha do pequeno sítio onde vivera tantos anos e tantas aventuras. Podia vislumbrar sua avó na cozinha ao pé do fogão a lenha despejando água quente no bule de alumínio encardido pelo café. E tinha fedegoso. "Para render", ela dizia. Nem gostava tanto de café assim naquele tempo, mas com o passar de suas idades passou a gostar e admirar o café. Nem imaginava que horas eram da manhã. Não que isso fizesse qualquer diferença naquele dia; era feriado e podia levantar-se a hora que bem lhe aprovouvesse. Esticou-se languidamente sob a cama esticando a colcha de florzinhas brancas e azuis. Movimentou vigorosamente os pés em círculos estalando suas juntas. Poderia voltar a dormir, não faria diferença. Esse era um dia para se desperdiçar deliciosa e mornamente. Eram anos. Seu quadragésimo...!!! recusou-se a terminar o pensamento que comporia sua idade. Não que se envergonhasse, mas lhe pareceu no momento absurdo já ter tantos anos de vida. Sentia-se muito jovem ainda, e ela era uma garota cheia de sonhos que por muito tempo não realizou nenhum, por não saber qual deles conseguiria primeiro, mas sempre teve certeza que realizaria todos. Todos. Sem exceção. Um filme em cinza começou a invadir-lhe a memória. Podia se lembrar de quase todos os seus aniversários. E foram tantos quantos seus anos pudessem resistir, mas tão poucos que pudesse celebrar. Não havia sido uma vida de muito dinheiro, então, comemorações eram extremamente raras e singulares. Não conseguia recordar vivamente de sua primeira festa de aniversario. Na sua primeira memória persistia a imagem de um bolo quadrado rosa, tingido com kisuco de morango que também era servido como bebida, bexigas brancas e alguma coisa parecida com brigadeiro. Lembrava-se do barulho e a correria pelo quintal e se lembrava de Mamá, menino feio e perverso que morava em sua vizinhança. Eram talvez seus seis anos. Lembrava da escola classe e da primeira professora chamada Raimunda. Inesquecível. Enquanto menina terrivelmente ativa e sabida, deveria ter sido a razão do acréscimo de muitos fios brancos de preocupação na cabeça da professora. Era a primeira festinha que tinha recordação. Depois dessa um vácuo seguiu-se por muitos e muitos anos. Não se lembraria mais de nenhuma, até o cheiro do café com pêta invadir sua memória. Os aniversários na terra longínqua de quase qualquer civilidade, as festinhas de aniversário eram regadas a suco de frutas torcidas em alvos panos de pratos, biscoitos de polvilho e bolos de ovos assados em esplêndidos fornos redondos instalados no meio do quintal de terra batida, o mesmo que servia para debulhar as bagas de feijão, bater o arroz seco dos cachos dourados e retirar os grãos de milhos de seus sabugos. Eram um luxo só essas ocasiões. E ela se lembrava bem das pêtas e dos biscoitos de goma que derretiam na boca! E como era bom!!! O cantar dos parabéns era tão tímido quanto os poucos presentes que se ganhava. De um ela se recordava saudosamente: a primeira sandália de mocinha! E como era linda. Picadilly. Era essa a marca, tinha tirinhas finas trançadas, uma fivela dourada e o salto de madeira. Era pesada e servia bem como castigo para alguns amiguinhos. A alegria de ter ganhado a sandália só não era mais completa por que com ela não havia ainda ganhado a sonhada calça jeans azul, daquelas que na primeira lavagem a água se tingia de um azul profundo que parecia que desbotaria e ficaria feia... Mas não, a tão desejada calça jeans só viria muitos anos depois, muito além e tão somente na primeira festa do Divino e do Cordão de Reis, na qual tomara certo papel relevante como a estrela guia do Cordão de Reis. Depois disso novo e profundo silencio de celebração natalícia. As condições de vida não eram boas. Mas mesmo assim sempre se lembravam da data com alguma coisa relevante. Exceto nos seus quinze anos. Tragédia. Uma data tão significativa, aquela idade chave onde a menina se torna quase uma mulher, fora para ela a mais profunda decepção! Não que tivesse sonhos de debutante desmiolada, mas era uma data importante. Sutilmente importante. Lembrou de súbito que seus pais a ignoraram, e nem mesmo o almoço do dia tinha sido especial ou relevante: havia sido peixe do rio e quibebe de abobora com quiabo. Era melhor, a essa altura de suas lembranças esquecer a data de seus dezoito anos. Mas que! Doce ilusão da maioridade. Nem maioridade, nem diferentes responsabilidades, era só estudar, estudar e estudar. Ela sabia que só poderia mudar sua condição e destino com estudo e dedicação a algo que valesse a pena. Não precisava necessariamente ser seu sonho, teria que ser algo que a tirasse ou ainda a protegesse da sua condição de pobreza e dependência de parentes. Sonhos em sua vida eram ilusões, a ela só era permitido mesmo sonhar com coisas impossíveis para poder moldar sua realidade. Não podia reclamar da vida, nem devia. Já havia realizado boa e grande parte de seus sonhos primeiros e secundários. Era feliz. Bem feliz em seu mundo real e satisfatório. Em permanência, sua vida no momento apenas carecia de um amor verdadeiro, uma recíproca paixão sonhada. Esticou-se novamente sob a cama, abriu finalmente os olhos e sorriu como quem dá um adeus as recordações e acordou para festejar seu dia de aniversário. Era seu dia. Só seu. Seu feriado. Sairia, compraria presente para si mesma e, se daria um jantar delicado com um vinho branco, algo leve e gostoso, uma musica suave, e, de quebra a sobremesa poderia ser um cupcake decorado com uma vela. E só.

Malibe, hoje.

08.04.2016.