O empinador de pipas
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, 4 de abril de 2016
Zé Cabeção, também conhecido pelo apelido de Zé Papoco, era um menino de feições não muito agradável, entroncado e estava sempre querendo brigar com os demais meninos da rua.
Ele não frequentava escola nenhuma. Vivia perambulando pelo bairro. Todas as crianças entre seis e treze anos tinham medo dele, pela sua cara e comportamento. Não era nada asseado, exalava odor nauseante, repugnante. Mesmo assim, ele procurava se acercar da meninada quando estavam a brincar na rua. Quando era futebol, ninguém o escolhia, ele se contentava em ir apanhar a bola quando ela era chutada com mais força e caia no terreno do seu Manoel Preto, velho que vendia carvão de casa em casa, sempre carregando quatro latas de querosene cheia desse precioso combustível natural, que ele mesmo preparava, fazendo queimar galhos secos de árvores nos terrenos descampados do bairro, ainda em formação. Zé Papoco era o único menino autorizado a invadir os domínios do seu Manoel Preto. Ele pulava a cerca e voltava feliz com o seu troféu, transferindo-o sempre para as mãos do “Galeguinho”, o filho do seu alemão, o senhor Fagner, que em alemão significa "aquele que faz carroças". Claro que não era o caso.
Sempre depois de uma chuva, os terrenos arenosos costumam ficar compactos, propício para se jogar bila, bolinha de gude, cabiçulinha. Zé Papoco não era muito bom nesse jogo, que consiste em fazer chegar, com o impulso do dedo polegar, uma bola de vidro maciço, de pouco diâmetro, dentro de três buracos de cova bastante rasa e diminuto tamanho, cavados em linha reta à distância de três passadas entre buracos. Aquele que conseguisse passar – ida e volta – pelos três buracos, ganhava as gudes dos outros competidores, geralmente não mais que quatro. Zé Papoco não era bom nisso, sua coordenação motora e seus olhos trocados, vesgos, tiravam-lhe sua destreza para acertar nos buracos. Mas ele sempre estava presente em qualquer partida e sempre perdia, não se importava com isso. Até hoje não se sabe onde ele conseguia tantas bilas, pois vivia com os bolsos cheios delas. A meninada brigava para jogar com ele, era vitória certa e ganho de muitas bilas. Zé Papoco ficava feliz vendo eles brigarem pela oportunidade de jogar com o cara mais azarado do mundo, como ele se classificava. Só deixava de jogar quando perdia todas a cabiçulinhas que havia trazido. Mas não ficava zangado nem triste. Sempre dizia – amanhã eu vou ganhar, vou trazer as de cor azul, para tirar essa urucubaca. Tinha menino que às custas do Zé Papoco, conseguia juntar muitas gudes, desde às mais simples às mais sofisticas e belas. Um deles ganhou do Zé, uma “olho de gato”, conhecida assim pelos detalhes amarronzados contrastando com o fundo branco leitoso. Para arrancar essa do bolso do Zé foram necessárias o seu opositor ganhar cinco partidas seguidas, coisa que não foi difícil. O Zé até chorou quando passou sua gude de estimação, para a mão do adversário. Em uma competição desse tipo, Zé também perdeu sua “butição”, uma gude de tamanho maior que todas as outras.
Lembrando; foram os colonizadores portugueses que trouxeram para o Brasil as bolinhas de gude, cujo nome vem de “gode” pequeno seixo redonda, godo, gogo.
Em Fortaleza, sempre nos meses de agosto, setembro e outubro os ventos atingem entre 40 e 50 km/h, deixando a cidade com clima mais ameno pela sensação do calor diminuído, deixando-a mais agradável. Nesses dias, Zé Cabeção, o Zé Papoco virava herói. Dias nos quais a meninada se juntava ao seu redor para vê-lo soltar pipa, na verdade arraia. Parecia até que nessas ocasiões ele tomava banho, vestia a sua melhor roupa e desfilava garboso entre a garotada, com suas arraias, feitas por ele próprio. Eram as mais coloridas, a de maior rabo, às vezes também coloridos. Ele botava inveja em todos. Nenhum daqueles garotos chegavam aos seus pés na arte de construir arraias e também fazê-las ganhar o belo céu azul das tardes de seu bairro. Era um prazer desmedido ver as arraias do Cabeção alcançar altitude e cortar, em duelos fantásticos, sem o objetivo de desagravar a honra de seus combatentes. Ele não usava cerol, mistura cortante de vidro moído e cola, passada na linha. Dizia que era covardia, ele era o melhor e não precisava fazer isso, enganar o adversário, geralmente um garoto da redondeza, que ele conhecia.
A grande preocupação do Cabeção era com a estabilidade de suas arraias, com a aerodinâmica delas, embora não soubesse o que era isso. Havia um ritual na feitura de suas arraias, desde a escolha da taliça da folha de coqueiro, que deveria estar bem seca e flexível, à folha de papel, sempre leve, tipo seda. As taliças, duas, uma maior que a outra, eram dispostas em cruz, sempre amarradas com linha de costura zero a uma taliça central. Essa mesma linha rodeava dota a estrutura da arraia, ligando uma treliça à outra, pelas pontas. O arcabouço pronto ele envergava a estrutura, com cuidado, para produzir melhor efeito na aerodinâmica. O papel era então colado à essa estrutura pela linha que a circundava, de tal forma que as partes coladas tivessem o mesmo tamanho. Era a hora de colocar o rabo, a rabiola, feita de tiras de pano atada à linha zero, funciona com contrapeso.
Mais concentrado ele ficava quando estava empinando uma arraia. Para comandar o bailado que todos admiravam, era preciso confiar no parceiro que seguraria a arraia na outra ponta do carretel, 15 a 25 metros de distância. Ao sinal, o amigo soltava a arraia e Cabeção começava a correr, com postura de gazela, peito estufado, sempre carretel e linha à mão. Uma performance digna de um primeiro bailarino de uma peça famosa. Sua arraia estava voando, digo, bailando no céu, fazendo Rond de jambé en l'air, Fouetté, ballonné, Cabriole etc. Todos ficavam extasiados sem tirar os olhos daqueles movimentos suaves encantadores. Eles eram demonstrações da capacidade do Zé Papoco em dominar uma arraia. Só faltava no ar os adversários, para ele derrubá-los todos, colocá-los ao chão, sua maior vitória. A cada dia ele ficava mais ousado, mais confiante, derrubava todos os seus adversários. A cada cortada de arraia adversária a meninada corria para apanhar a derrotada. Ele sorria satisfeito, não se cabia de alegria. Certo dia, durante uma dessas corridas para apanhar uma arraia que Zé Papoco, com muita alegria cortara, o único amigo que ele tinha, aquele de sua confiança para segurar suas arraias, foi atropelado e morreu. Zé Papoco desapareceu do bairro e nunca mais foi visto. A meninada, triste, passou a comentar que ele havia voado para o céu, agarrado em uma de suas arraias.
Em tempo; os dois apelidos designadores do rei das arraias tinham um porquê: Zé Cabeção, pela cabeça grande e disforme e Zé Papoco, porque todas as vezes que cortava uma arraia e ela caia ele gritava “papocou”, daí...