EU ESTAVA LÁ.
Eu estava lá
Na calçada daquela esquina, à tardinha de um dia ensolarado e muito quente, várias pessoas transitavam apressadas. Na rua, os carros obedeciam ao semáforo, mas o movimento era intenso, assim como o barulho de motores, buzinas, vozeirio de pessoas, sirenes de ambulância. A minha volta, prédios com sacadas mostrando flores, em vasos de cimento frio e cinza, enfim uma esquina de cidade grande.
Por um instante, aquelas flores em seus vasos me chamaram a atenção. Como elas haviam se adaptado a estas condições? Oriundas das matas, dos sítios lá do interior, ali estavam vivendo!
Por segundos de tempo, absorto nesses pensamentos, senti algo pontiagudo em minhas costas. Virei, e me deparei com um jovem, uma criança mesmo, de arma em punho, anunciou um assalto, ali naquela esquina, com toda aquela tropa de gente, e carros passando.
Minha reação, nem sei qual foi. Aquela esquina, a flor no vaso, aquela criança.
Uma criança. Eu também fui uma criança, e estava lá.
Era final da década dos anos cinqüenta. Quem reparasse em mim, estaria vendo todas as crianças daquele lugar. Com calça curta e suspensório do mesmo tecido. Camisa de tecido com botões e bolso, tudo próprio da época. Ah, o cabelo, era cortado à moda bodinho, esta era, a obra prima do barbeiro da cidade. Os pés descalços.
Alguns meninos e eu, reunidos em frente a minha casa na esquina, procurávamos não nos afastar da casa, sentíamos que o medo era bem maior que nossa estatura. Mas não sairíamos dali, não perderíamos aquele acontecimento, aquelas cenas, por nada.
A pequena cidade tinha as ruas de terra batida, as paredes das casas já quase sem caiação, ou cobertas pela poeira avermelhada, demarcavam o limite da rua, não havia calçadas, algumas pequenas árvores lutavam para sobreviver nos espaços que seriam da calçada. Os casebres, e as casas de construção mais moderna eram separados por terrenos baldios, quase sempre cobertos pelo mato, alguns cercados de arame farpado, outros de ripas de madeira, e muitos servindo de pastagem para muares.
Erguendo um pouco mais os olhos, a nossa frente tinha um terreno de banhado coberto por taboas. O pequeno córrego que se formava ali transpassava a rua, e ia margeando um terreno plano e coberto de grama, que era o nosso campo de futebol. À direita, ficava o centro da cidade, a igreja com sua torre imponente. Mais à frente, já ao longe, se via a Serra da Fartura e em sua parte mais alta passava a estrada, onde tinha uma curva que se chamava A Volta do Corvo.
“Planando na imensidão,
É ave anura, tamanha envergadura.
Plena de candura
Quando no solo;
É apenas o corvo
É nojo, entojo”.
A rotina era quebrada.
Acontecia quase sempre à tarde, em dias ensolarados e muito quentes. Com horas de antecedência podíamos prever. Naquele dia e hora escolhida, tudo iria se transformar. No meu entender todos da cidade se preparavam para aquele momento. Crianças, adultos, homens e mulheres, até os animais. O medo contagiante se espalhava. Havia suspense, ansiedade no ar. Aquele sem dúvida era o momento de testar minha coragem, ficar ali até o ultimo momento. Porem o medo, não nos permite avaliar precisamente sua intensidade, e nem prever suas conseqüências.
Eu, que crescia ouvindo as histórias contadas pelo mais velhos, pois assim davam veracidade, e até nas músicas os cantores cantavam; “essa rês é perigosa”. Os boiadeiros, sem a menor dúvida, eram os mais corajosos, eram heróis mesmo, que cavalgavam junto à tropa. Quantos boiadeiros perderam a vida nessa lide. Mas também quanta coragem do boiadeiro, quando um animal saía da trilha, e adentrava um quintal de uma casa, o boiadeiro, montado em seu alazão, de laço na mão, chegava e prendia a rês perigosa e salvava a donzela. E à noite, esse herói com sua viola, cantava para a amada em sua janela.
Naqueles tempos, em que nossos heróis de verdade eram os nossos familiares adultos, e os boiadeiros, o herói de mentirinha, era apenas o da novela do rádio, Jerônimo o Herói do Sertão que eu ouvia todas as noitinhas.
A tropa
Vindo de outra cidade, ou mesmo indo de uma pra outra fazenda, quando a tropa apontou lá longe, nós vimos uma nuvem de poeira levantando da estrada. Era o sinal. Naquele exato momento tudo ia começar, A rua esvaziava, portões, portas e janelas se fechavam, em pouco tempo os primeiros sons já eram ouvidos, o tropel, os mugidos dos animais, os cachorros latindo, os gritos com palavreados próprios dos boiadeiros. Tudo estava acontecendo, e aquele era o momento mais importante pra mim, minha decisão ali, envolvia minha vida. Corro pra dentro de casa e vejo pela janela, ou fico em lugar seguro aqui fora para avaliar minha coragem. Com essa dúvida ouço o som do berrante, tocado mais para exibição, por estar dentro da cidade, e este som ecoava em meus ouvidos, a imagem dos corajosos boiadeiros, apareciam mais alto que o gado, o barulho era ensurdecedor, a grandeza dos animais, a mistura de chifres e patas, o cheiro forte, a nuvem de poeira. Na intensidade daquele momento, não sabia se queria que aquele desfile continuasse, ou tudo terminasse, para que eu pudesse avaliar os acontecimentos. Foi então, que me vi do lado de fora da casa, na esquina, e acenando para o culatreiro que seguia em seu cavalo, estalando o seu chicote, era o último boiadeiro a passar. No chão a minha volta, muitos rastros das patas dos animais. As pequenas árvores caídas e pisoteadas. Muita, mas muita merda de vaca, espalhada e levada pelas patas do próprios animais. Era mesmo um campo de guerra. Sem nada palpável para poder comparar, ainda assim lembrava aquela esquina, onde eu, um adulto estava sendo assaltado por uma criança. Tamanha decepção trouxe-me de volta a realidade. Tentei falar a essa criança, sobre os feitos e os exemplos dos meus heróis verdadeiros, e ele me falou que heróis, só de mentirinha na televisão.
Os valores haviam se transformado, não resistiram ao tempo de uma vida, hoje eram muito diferentes, e eu, adulto, com muitos bons exemplos de vida, havia falhado, pois permiti que minha esquina tivesse se transformado a tal ponto.
De criança.
O tempo passou, e foi amontoando os sonhos que desmoronavam, guardando muitas lembranças. Mas, o mais interessante, é que eu adoro o cheiro de merda de vaca até hoje.
do meu irmão: Paulo C. Rozeto
Novembro/05.