BALLET*
-Eu vou tirar o moleque de lá! Tudo têm limite! Tudo têm limite! Sentia que lhe faltava o ar. Encostou-se na parede para não cair. A menina saiu da sala. Um tiquinho de gente. Devia ter uns 23, 24 anos. Mas parecia uma criança. Vestia uma saia de rendinhas de bailarina:
-Desculpa, o senhor é pai de quem?
-Do, do...do Luiz Otávio.
-Ah. Nossa! Ele é uma gracinha! O senhor poderia esperar dez minutos? Só até ele terminar o elefantinho?
-Posso, moça
O elefantinho? O elefantinho!? Não! Definitivamente não! Vai para escola pública! Já bastavam suas três filhas que não queriam ser vistas com ele. Agora seu filho, a luz dos seus olhos, virar viado?! Com 6 anos?!
Em cinco minutos ele saiu. Seu tesouro! Feliz, rodopiando, rindo. Não o tinha visto quando abriu a porta da sala. Deu um sorriso largo e veio correndo na sua direção.
-Pai!
Agarrou-o com força, gostoso, como sempre fazia:
-Vem cá, meu filhão. Tava dançando é?
-Tava pai! Colocou-o no chão e ele saiu rodopiando pelo corredor da escola.
-Nossa pai, fazia tempo que eu não via uma criança se empolgar tanto com a minha aula.
-É... Desculpa moça, qual seu nome mesmo?
-Michelle.
-Esse troço todo aí é o quê?
-É uma aula de apresentação do curso eletivo de ballet. A partir do mês que vêm vão começar, depois das aulas regulares, cursos extras. Têm judô, futebol, natação e ballet.
-Ah! Que bão. E ocêis que vão escolher o que os moleque vão fazer?
-Não! Os pais que escolhem.
-Ah então tá!
Olhou para seu filho que estava sentado tentando colocar o tênis. Sentou ao lado dele no chão:
-Tá difícil aí moleque?
-Tá, pai.
Colocou os dois tênis nos pés da criança.
-Agora amarrá ocê que faz. Do jeito que o pai ensinô. Passa um fio em cima dô otro. Isso. Puxa! Agora faz o laço em baixo. Puxa. Meu garoto! Deixa que o pai faz o otro.
Quando se levantou viu o olhar de desdém das mães que estavam no corredor. Todas muito chiques ou com aquele visual esportivo casual que ele cansava de ver na oficina.
Olhou para baixo! Camisa aberta no peito, suja de graxa, jeans, sapato de pedreiro. Corrente de ouro no pescoço. Tinha tomado banho antes de sair do serviço, como sempre fazia. Mas se recusava a se emperequetar só para buscar seu filho na escola.
Quis ir até o estacionamento da escola de mãos dadas, mas o filho se recusou. Saiu feliz pelos corredores rodopiando. Deixou. Caramba o bacuri gostou mesmo do bagulho. Só o agarrou perto dos carros.
Olhou para os outros automóveis. A sua Tucson não fazia feio. Ali tinha carros melhores. Mas a maioria era mais simples. Só Deus sabia o quanto ralava para ter esse padrão de vida. 13, 14 horas na oficina todo dia. A única coisa que lhe tirava do serviço era levar e trazer seus filhos na escola. Só que suas filhas, para quem sempre dera do bom e do melhor, agora desciam a 50 metros da escola. Diziam que era para encontrar as amigas, mas ele sabia que era por vergonha dele.
Chegava em casa sempre tarde mas o seu pimpolho sempre o esperava para jantar. Fazia a lição com ele e brincavam até ele dormir. Aí era a vez dele fazer sua lição. Ficava estudando as especificações dos novos carros. Elas sempre estavam mudando. Se não fizesse isso os moleques da oficina acabariam sabendo mais que ele e o engoliriam vivo. Vire e mexe dormia na mesa com a cabeça nos livros.
Virou o carro de repente e entrou em um desvio.
-Pai, onde a gente vai?
-O pai vai visitá um amigo. Fica tranquilo filhão.
Há cinco anos pelo menos não fazia este caminho. Mas parecia que tinha vindo ali ontem tamanha era a facilidade que dirigia a grande caminhonete pelas ruas estreitas. Parou em frente de um bar/mercadinho. As pelo menos cinco pessoas que ali estavam o olhavam ressabiadas. Um senhor magro, da mesma idade dele, saiu dos fundos do estabelecimento. Abriu os braços e deu um sorriso de pura felicidade.
-Puta que pariu! Mas ganhei o meu dia! Que alegria! Vêm cá dar um abraço! Há quanto tempo, Carlão!
Se abraçaram apertado, dando tapas um nas costas do outro.
-Meu, você sumiu! E este aqui quem que é? Seu moleque? Nossa, como está grande. Na última vez que eu o vi era um neném. Mas e aí, que bons ventos te trazem?
-Deu saudades...
-Mas senta aqui na mesa. O moço aqui o que é que vai querer? A criança olhava tudo com uma carinha de assustado.
-Dá uma coca para ele. Quer uma coca, filhão?
-Quero. Pai, tô com fome
Fez-se alguns segundos de um silêncio constrangedor
-Não se preocupe, Carlão. Você se lembra da Dona Josefa?
-Lembro. Ela ainda está viva?
-Está. Agora é minha funcionária. Ela e a filha. Agora não têm movimento, mas de manhã e no final de tarde, eu coloco uma bancada na porta e vendo os salgados dela. Tenho montada uma barraquinha na frente do ponto de ônibus na avenida. Com alvará e tudo. Eu vou trazer uma coxinha e um rizole de presunto e queijo pro menino. Você quer grandão?
-Quero.
-Como é seu nome, meninão?
-Luiz.
-Então vou trazer, Luiz. Espera aí.
Foi e voltou rápido da cozinha com os salgados e colocou-os no microondas. Reparou neste interím que o bar tinha mudado bastante desde a última vez que estivera ali. As paredes tinham sido todas ladrilhadas, o chão era de piso frio e não do antigo cimento pintado. O balcão era relativamente moderno e as mesas de sinuca e de pebolim eram novas. Na estante de bebidas tinha Jack Daniel's e Montilla, algo impensável nos velhos tempos.
-Cê melhorou, hein Zé?
-Só você que pode, meu irmão?" Colocou os salgados e a coca na frente do menino, junto com o ketchup.
-Pela graça de Deus as coisas têm ido bem. E nóis, vamô tomá o quê?
-Manda um conhaque com mel e limão e uma branquinha.
-As duas da tarde?
-Manda.
-Vô não. Nós vamô primeiro tomá uma cerveja e cê vai me explicar o que está acontecendo.
-Porra Zé! Um homê não pode sentir vontade de tomá uma com seus amigos de infância?
-Tá. Cê some por 5 anos, aparece aqui com seu filho no meio da tarde. De repente. Numa puta duma nave! Prá tomá cachaça?! Oh Carlão?! A gente cansou de carregar seu pai deste bar prá casa. A gente jogava bola junto Carlão. Cê tá falando comigo, caralho!
Uma lágrima rolou pelo olho do mecânico enquanto olhava para o nada.
-Perá aí que eu vou buscá uma cerva gelada prá nós. Ôh Mendonça! Ôh Mendonça! Segura as ponta aí do bar que eu não tô prá ninguém!
Encheu os dois copos e sentou.
-Fala irmão
-Sei lá Zé... Você sabe o duro que eu dei prá chegar onde eu tô. Desde os sete eu ganho meu dinheiro. Desde os dez dentro de oficina. Fui estudá depois de velho. Mas eu consegui, Zé. Hoje eu sou rico. Num vô dá uma de falso humilde. Casa boa, carro bão, Minhas filhas e meu filho em colégio de bacana, a muié só anda nos pano. e eu dô tudo prá elas Zé. Tudo! O que elas qué, tem. Nunca encostei um dedo em nenhuma. Porra Zé! Eu não tive nada. Cê lembra, né? Era só porrada. Eu nunca encostei um dedo na muié ou nas criança. Agora a Sônia só vive arrumando encrenca, só lamentando. Minhas filha tem vergonha de mim...
O Zé soltou uma gargalhada gostosa:-Mas também pudera Carlão?! Ocê tá fazendo tudo errado!
-Mas errado como Zé?
-Ué! Como posso explicar? Cê lembra do meu pai?
-Seu Hermínio...homem bom. Que Deus o tenha!
-Me botou atrás deste balcão quando eu tinha 10 anos. E me mandou para a escola. Lembra como eu reclamava que queria brincar? Hoje eu agradeço a Deus. Fiz isso com minhas filhas e com meu filho. Além da escola, 4 horas aqui comigo. Já chamaram até Conselho Tutelar prá mim. Tô nem aí! Ocê não pode fazer tudo por elas ou pelo grandão aqui. Têm que fazer tudo com eles!
Estava de novo no carro mais indo para o outro lado da cidade. No celular vinte mensagens e ligações perdidas da esposa. Ligou para a oficina:
-Ricardo, faiz favor. Liga prá minha patroa e diz que eu tô em um leilão e que assim que der eu ligo prá ela.
-Tá. O senhor volta aqui hoje?
-Não.
Chegou a um pequeno escritório. A porta, além de reforçada, tinha um enorme gorila branco fazendo a segurança. Estacionou na rua, se anunciou. Veio outro gorila branco e o acompanhou a uma estranha sala, cheia de quadros de santos esquisitos. Todos de lado e acenando com a mão. Veio um senhor também muito branco.
-Seu Karlos! Minha amiga! O que ter parra mim hoje. Nova Subaro, novo leilão?
-Boa tarde seu Andropoiv.
-Já falar. Já falar. Chamar Iúri. E quem ser esta. Sua filha. Que grande!
-É... Seu Iúri. Desculpa incomodar o senhô, mas eu precisava de um conselho. O senhô é russo, né?
-Autêntica moskovita!
-Cês têm um tar de balê Bochôi, né?
Chegou em casa a noite. Estavam todas na porta esperando, furiosas. Antes que falassem qualquer coisa mandou irem para a sala:
-Ó, é o seguinti. Bloquei todos cartão, encerrei os plano de celulá e dispensei a Maria. Cês qué tê regalia daqui prá frente têm que começá a fazê alguma coisa. Pelô menos arrumá a casa! E o Luis tá no balê. Quem zoar o moleque vai para escola púbrica!
Foi uma noite de gritos, choros e lamentações. Dormiu com seu filho em um colchão no closet contíguo ao quarto de casal. No notebbok ao lado deles passava um filme sobre um tal de Barichinicove.