O pôr do sol

Era dia quente. Desses que a gente se sente seca por dentro. Dulce passava a trouxa de roupa da gente da cidade. Uma pausa. Alisa a barriga. Ao som do rádio de pilhas, que ora chiava ora tocava alguma música, Dulce se encanta com a voz de uma bela jovem. “Najla”, diz o locutor. “Najla”, repete Dulce. Mais uma vez alisa a barriga, abre um meio sorriso e sussurra, pausadamente: N-A-J-L-A.

O pai da criança, Pedro, dissera certa vez que iria comprar pão. Nunca mais voltou. Dulce se ajeitava como dava, ora passando roupa ora limpando casa da gente da cidade. Mas a barriga, de uns tempos pra cá, limitava algumas de suas atividades.

Dois meses se passaram. Dulce acordou sentindo dores. Uma poça d’água se fez aos seus pés. Mas Dulce não tinha dinheiro para ter a filha na cidade. Os hospitais públicos só funcionavam pra aquela gente que conhece aquela gente que trabalha no hospital, que geralmente é gente parente ou amigo do prefeito, que não precisaria dessa gente pra ajudar. Dona Maria, a parteira mais antiga do vilarejo, foi socorrê-la. E ainda que já tenha perdido a conta de quantos partos já fizera, Dona Maria sempre se encantava quando via uma nova vida.

Já era então de noitinha, e Najla dava o seu primeiro choro, o choro da vida. Quando a mãe a viu pela primeira vez, um riso e choro se fizeram, e se demorou por alguns instantes naqueles olhos, tão grandes e tão brilhantes para um ser ainda tão pequeno.

Dulce fizera umas economias, pensando que pelo menos o primeiro mês não poderia trabalhar. No segundo mês, lá ia andando os 10km até a cidade, com a cria. Ainda que fosse cansativo carregar Najla no colo, ao menos não havia mais barriga para atrapalhar. Mas eram necessárias pausas. Dulce precisava dar à Najla de mamar. E Najla nunca se dava por satisfeita, sugando o pouco de energia que ainda restava de Dulce. Mas a mãe, mesmo cansada, jamais deixava de sorrir e de se encantar com aqueles olhos tão brilhantes.

Ainda que no vilarejo dissessem que Pedro não fora homem, Dulce ao menos lhe agradecia por ter ido embora mas deixado um tesouro imensurável. Pois era Najla a sua companhia das horas que antes eram de solidão. Era Najla a sua esperança, a sua alegria, a sua vontade de acordar todos os dias.

Najla já tinha 3 anos. Acompanhava a mãe até o vilarejo sem pestanejar. Até ajudava em algumas tarefas. Quer dizer, achava que ajudava. Às vezes, Dulce precisava refazer toda a tarefa. Mas jamais se zangara com a filha a esse respeito, pois sabia de suas boas intenções. E, ao mesmo tempo, Dulce se sentia culpada por não oferecer nada à filha, e todo o trabalho em dobro era a sua penitência.

Havia uma coisa que Najla sempre gostava de fazer enquanto voltava com a mãe de um dia de trabalho: ver o pôr do sol enquanto caminhavam pela estrada quase sem vida. Najla sempre sorria, apontava o dedinho indicador para o céu e dizia: “olha, mamãe!” e abria um baita sorriso. A mãe olhava fraternalmente, se abria em um sorriso ao mesmo tempo triste e alegre, afagava a cabeça da filha e dizia: “e daqui a pouco o sol estará de volta”.

Aos 6 anos Najla foi para a escolinha que havia no vilarejo. Dulce sempre dizia à filha que ela não seria como mãe que, ainda criança, precisou ajudar nos afazeres da casa ou da fazenda, deixando os estudos para depois. Um depois que nunca houve. Najla seria feito aquela gente grande da cidade.

Toda orgulhosa, Dulce comprou um caderno, um lápis e uma borracha à filha e costurou, com retalhos que tinha, um bolsa para servir como mochila. A garota ia saltitando pela rua, agarrada à mão da mãe. Na entrada da escola, as duas se abraçam e sem que Najla percebesse, Dulce deixara uma lágrima rolar. De dor. De orgulho. De esperança. Na volta da escola, Najla se atropelava nas palavras, radiante com a ideia de que iria aprender a ler e a escrever, que poderia descobrir toda a magia das letras. A mãe era só ouvidos e se encantava com aqueles brilhos exaltados dos olhos de sua filha.

Najla ia bem na escola. Era disciplinada e muito, muito curiosa. Em apenas algumas semanas na escola, já sabia de cór as letras do alfabeto, e já se arriscava a ler algumas palavras. Para a mãe, não havia criança mais inteligente. Najla era um verdadeiro gênio.

Mas alguma coisa estranha começou a ocorrer. Najla começou a se embolar nas letras. Dulce se preocupou. Resolveu conversar com a professora. Havia alguma coisa diferente em Najla. Por que se embolava nas letras se, a princípio, era bastante esperta? A professora lhe explicou que era normal. Que algumas crianças, no começo da alfabetização, se atrapalham com as letras.

Entretanto, Najla passou, então, a se calar. Os olhos perderam aquele brilho, aquele encanto. A garota não queria sequer ir à escola. Dulce percebeu que algo de mais grave estava acontecendo. E embora lhe custasse deixar a filha algumas horas a mais em casa, sozinha, Dulce resolveu que precisava de mais dinheiro. A filha precisava ver um médico.

Um mês se passou até que Dulce tivera dinheiro suficiente. Najla foi inspecionada pelo médico que, imediatamente, notou algo estranho nos olhos da menina. Examinou-os com cautela. A suspeita de Dulce se confirmara. Era sim algo mais grave. Najla tinha uma doença rara que a mãe mal conseguia pronunciar: glaucoma. O doutor lhe disse que a menina tinha direito ao tratamento gratuito e foi a essa esperança que Dulce se agarrou, ainda que soubesse como as coisas gratuitas funcionavam.

Najla se tornou outra criança. Não havia mais os passos saltitantes, as tantas palavras atropeladas, nem a curiosidade pelas letras, pela vida, pelo mundo. E Dulce sentia uma falta imensa daquele seu dedinho indicador, aquele apontando pro céu.

Todos os dias, às 4h da madruga, lá estava Dulce na fila do hospital, na espera de uma vaguinha pra sua filha. Mas nunca Dulce conseguia a tão sonhada vaga. Eram sempre preenchidas antes que chegasse sua vez.

Depois de uns 2 meses de espera na fila, Dulce conseguira, finalmente, um atendimento para Najla, que cada vez enxergava menos. Entretanto, como se referia a um tratamento muitíssimo caro e inovador, não seria assim de imediato. Precisaria ser feito na capital. Foram mais 5 meses de espera.

A cirurgia fora marcada. Najla já estava perto dos seus 7 anos. A mãe, ainda que soubesse que esse era o único jeito, sentia medo, medo de que sua filha se fosse de vez. Dulce não entendia nada de procedimentos cirúrgicos. A palavra cirurgia já lhe causava bastante medo. Restou-lhe um abraço aperto, um beijo na testa, um afago nos cabelos e o coração na mão.

Algumas horas depois, Dulce cochilava na cadeira ao lado, ainda que as costas lhe estivessem doendo, o esgotamento – físico e psicológico – lhe tirara as energias. Acordou com um breve movimento de Najla. Observou-a. A menina foi abrindo os olhos lentamente, ainda não acostumada com a luz muito forte da sala do hospital. A mãe imediatamente se levantou, abriu-se em um grande sorriso ao perceber que aqueles olhos brilhantes estavam de volta. Abraçou a filha. Um abraço desses bem apertados, que se demora uma vida. E ao perceber que já ia anoitecendo, correu à janela, afastou as cortinas e apontou para o sol, que se punha: “Olha, Najla!”. “Sim, mamãe, e daqui a pouco o sol está de volta.” E dos olhos escorreram lágrimas.

Por Jéssica França
Enviado por Por Jéssica França em 09/03/2016
Reeditado em 08/08/2016
Código do texto: T5568455
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