RUA XIS
Oswaldo completou noventa anos e percebeu que durante toda a sua vida morara em apenas cinco lugares, em cinco ruas diferentes: rua Doutor Jesuíno de Souza; rua Constantino Maciel; rua Acalifas e rua Afonso XIII. Oswaldo completou noventa anos e percebeu também que, entre tantos disparates de fim de jornada, mantinha-se em uma dúvida: não sabia quem foram as pessoas ou coisas homenageadas atrás daquelas ruas. Isto era algo significativo. Ninguém deve morrer com esta dúvida. Idosos podem chegar à perfeição.
Oswaldo morou durante quarenta anos na rua Acalifas. Nunca soube o que era uma acalifas. Parecia algo sem sentido: uma Acalifas é o nome de um arbusto ornamental de folhas avermelhadas conhecida também por “flamengueira” porque a coloração das folhas é semelhantes as cores do Clube de Regatas do Flamengo. Oswaldo era vascaíno. Então residira na rua errada? Isto lhe provocou uma depressão estranha. Comemorou todos os campeonatos do Vasco da Gama na própria sede do adversário.
Tal absurdo pareceu-lhe igual ao dia em que soube: no final, depois de roubada, a taça Jules Rimet, do tricampeonato mundial de futebol, foi comprada e derretida por um atravessador argentino. Do mesmo modo Oswaldo festejara muitos títulos do Vasco em uma rua da torcida uniformizada do Flamengo. Isto não pareceu muito certo, mas tudo poderia ser apenas uma cisma de velho. Oswaldo não sabia. Preferiu não problematizar títulos de futebol, ou melhor, não se deve problematizar muitos rótulos aos noventa anos. Esta conclusão foi um progresso, pensou.
Oswaldo procurou saber depois, quem estava por trás da rua onde atualmente residia: rua Afonso XIII. Afonso XIII foi o rei da Espanha no início do século XX. Ele viu cair o império espanhol. A Espanha perdeu Cuba, Porto Rico e até as Filipinas. Então qual o motivo da rua receber o nome do tal rei perdedor? Quem sabe fosse pelo fato do rei representar uma existência última e existências últimas precisam das suas colocações em grandes cidades? Oswaldo estava então na rua certa. Aos noventa anos era um dos últimos, em seu local de honra e tudo estava quase resolvido.
Foi pesquisar então as ruas da sua infância no Rio: rua Jesuíno de Souza, rua Constantino Maciel. Quem seriam estes homens? Eram amigos? Lutaram na guerra do Paraguai? Amaram quantas mulheres? Oswaldo pesquisou e nada descobriu. A biografia dos homens não existia mais. Não estavam nem nos informes da prefeitura. Eram apenas nomes de ruas.
Oswaldo pensou: as vidas daqueles homens deixaram de constar mas, se os semáforos funcionarem nos cruzamentos, isto justificaria os cruzamentos e os nomes.
Luzes verdes acionando semáforos revelam alegrias matinais.
Oswaldo sentiu esta alegria por um momento e chegou à perfeição. Foi um esplendor às sete da manhã do dia 28 de janeiro.
O senhor Oswaldo não precisa mais de muitos rompantes ou pulsões aos noventa anos, mas eles são incontroláveis.
DO MEU LIVRO: "TOUROS EM COPACABANA"