SAÍDA*

-“Não quer mesmo que eu te acompanhe? Te pago um café, te levo em casa. Banco até uma farra. Tudo para o nosso herói”

-"Não, Tiago. Valeu. Você sabe."

-“É, eu sei. Aproveita.”

Nada como um companheiro das antigas. Os velhos colegas de hospital levaram até a mal ele preferir um amigo de cadeia como responsável. Mas nenhum deles iria entender. Sair de uma clínica, de uma prisão, de um hospital... é como acordar de um sono profundo. Tudo é diferente, intenso. Os sons, as cores, os cheiros, as pessoas. Dezesseis internações e duas trancas, uma de dois anos e uma de cinco haviam lhe ensinado isso. Esse momento era só dele, daqui para frente tudo seria sofrimento, dor, solidão. Seria? Olhou para cima. Ainda era cedo, mas já se abria um céu de brigadeiro. Ficou parado olhando-o por um tempão, sem pensar em nada. Quando cansou voltou o olhar para o movimento das pessoas na rua. Não fazia a menor ideia do que devia ou queria fazer.

Girou o guarda chuva antigo que lhe servia de muleta. Sete rodadas com um só movimento terminando com um apoio perfeito no chão, resultado de treino exaustivo. Pensou nos tiros que havia levado: um no pulmão direito, outro no fígado e o terceiro na perna esquerda. Perdera a força nesta, mas não no braço correspondente. Havia trabalhado muitos anos na enfermagem com a fisioterapeuta que cuidou dele, limparam muita merda juntos. Nenhum outro profissional aceitaria que ele não usasse aquelas muletas ultra modernas horrorosas. O que restara do seu orgulho não lhe permitiria.

Acendeu um cigarro e deu uma bela tragada. Aquele sabor de fumo depois de três meses, parece o primeiro cigarro da vida, a tontura gostosa. Parecia que fumaça o preenchia, como se ele fosse um vidro vazio. Não sentia auto piedade, inveja, raiva, orgulho, remorso, só a alegria de estar ali, vivo:

“For all we know, this may only be a dream…”

Parecia mesmo que tudo tinha sido um sonho. Que podia desaparecer como a névoa que saia de sua boca. Ver tudo se dissipar; ter feito sua veia de chupeta, as humilhações, a perda do emprego, o tráfico, a prisão, o morar na rua.

Uma sensação de paz igual ao seu último momento de consciência na ambulância lhe invadiu, lembrou seu último pensamento antes de perder a consciência:

-Uma morte nobre para uma vida de merda.

Para acordar mordendo a cânula de um respirador, a dor no peito da respiração forçada, o pi pi pi dos aparelhos. O pensamento irônico, mas sem mágoa:

-Achou que ia embora sem pagar toda a comanda, Mané?

Iniciou sua caminhada. Cantava:

-" E se você saísse a francesa,

Eu te amaria muito mais, muito mais"

Sumir no mundo, sem deixar rastro. A ideia lhe enchia o coração de contentamento. Ouviu de repente uma buzina estridente. Vinha do mesmo carro que impediu de ser roubado. Nele o pai (juiz), a mãe (médica) e a filha de doze anos, gritavam felizes:

-“Venha! Venha! Venha!”

“Você se torna eternamente responsável pelas pessoas que cativas”

Vai ser um porre aguentar a gratidão dessa gente...

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 29/02/2016
Reeditado em 04/11/2024
Código do texto: T5559538
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