O ROUBO DAS PALAVRAS

 

"Me falta una palabra, una palabra

sólo.

       Un niño pide pan; yo pido menos.

Una palabra dadme, una sencilla

palabra que haga juego

con...            

         Qué torpes

mujeres sucias me interrumpen

con su lento

llorar...

           Comprended: Cualquiera de vosotros,

Olvidada en sus bolsos, en su cuerpo,

Puede tener esa palabra.

         Cruza más gente rota, llegan miles de

muertos.

La necesito: ¿No véis

que sufro?

       Casi la tenía ya y vino ese hombre

Ciniciento.

Ahora...

              ¡ Una vez más!

                                Así no puedo."


No céu o novelo de lã parecia insuficiente para agasalhar os corpos naquele dia. Multidões de peles se encolhiam.. Sapatos pareciam crescer inexplicavelmente. Corpos rápidos percorriam as ruas quase desertas. Passos largos marcavam o movimento dos joelhos. Pernas fugiam esquivando-se da vontade de se arquearem, na  medida em que o dia se desenrolava. Os fios da lã amarela ficavam mais finos e pálidos. Corpos apressavam-se mais,  iam de um lado a outro, não se tocavam, abriam caminhos em direção às casas quentes. A segunda porta do El Aire Cafe se fechou  atrás de Corpo Primeiro. Deixou de fora lampejos da  lã já quase branca. Antes de chegar à barra começou a se desembrulhar. Depositou o casaco numa das duas cadeiras que descansavam juntas a uma pequena mesa. As guantes foram retiradas e mãos alvas sacaram do bolsillo la plata. Uma boca anêmica pediu um café. - Por favor, un Irish coffee! Duas moedas brilharam e cambiaram  de mãos. “-¿Algo más?” perguntou a voz de Corpo Indiferente, ainda com as moedas na mão. “– No, gracias!” respondeu Corpo Primeiro. Um “- ¡Que aproveche!”ficou para trás. 

 

À mesa, Corpo Primeiro observava a fumaça que subia da xícara  em direção ao nariz vermelho, quebrando-lhe o adormecimento. O cheiro era agradável. Corpo Primeiro o sentiu por alguns minutos antes de leva-lo à boca, à língua,  aos dentes, ao céu, à garganta... O cheiro se transformou em sabor. Um momento de felicidade única transportou a alma à  casa antiga, para além do oceano. Próximo à xícara um jornal foi aberto. Folha por folha foi passada com desinteresse. O barulho da segunda porta trouxe consigo o frio deixado pela primeira. Outro corpo ansiava por café e tapas. Corpo Segundo.
“-¿Algo más? -  perguntou a mesma  voz envelhecida de Corpo Indiferente. Silêncio. “-¿Seguro?  Insistiu a voz. Silêncio novamente.  Segundo  tinha fome. Tapas sobre a mesa. Um livro foi sentado na cadeira. Primeiro espichou  os olhos à cadeira. O livro estava úmido. Os olhos desconfiados de Segundo coloriram-se de um lilás duvidoso.  Os olhos de Primeiro esverdearam-se gritando que nada viram  e voltaram-se à xícara fumegante de café e ao jornal aburrido.
 


                        Voz que soledad sonando

por todo el ámbito asola,

de tan triste, de tan sola,

todo lo que va tocando.

 

Atrás de Corpo Primeiro,  Desejo fazia cara de contra-gosto ao cruzar os braços, e, distraído, ficou observando as pernas que desfilavam do lado de fora, pela vidraça. Pernas de todos os tipos e para todos os gostos. As de jeans passavam em grupos ziguezagueantes. As de botas de cano longo e mini faldas dançavam sedutoras. As de calças risca de giz em marcha. As de calcetín, acompanhadas por casacos antigos de lã, sapatos baixos e rastejantes, eram lentas como sua dona gorda. Era uma  distração passageira e Desejo se impacientava por detrás de Primeiro e da xícara de café que não mais fumegava; descruzou os braços. No mesmo instante os olhos de Primeiro voltaram-se ao livro de Segundo. A cadeira entendeu o desejo de Desejo. Se pudesse arrastaria suas quatro pernas para que Desejo parasse de gritar. “– Yo mismo me encontre frente a mi en una encrucijada.”  Os olhos mudavam de lugar. Ora para o livro. Ora para  a boca faminta e desordenada de Segundo. Cairam migalhas por toda parte, sobre o casaco, sobre a mesa, sobre o chão e sobre o livro sentado. Segundo não se importava. " as veces mi egoísmo me llena de maldad..." Ele parecia tão frio quanto ao vento que rangia no abre e fecha da porta.  Beber café era o  ponto em comum de todos os corpos ali adentrados, que caminhavam listos, resolutos à barra. Um deles comprou café e moedas que impingiram música a todos.

 
                             " La tarde muere envulta en su tristeza.
                          Paisaje tierno para soñadoras

miradas de mujer, exploradoras

de su melancolía en la belleza.

 

...

 

Un pajarillo gris, desde una vana

rama, canta a la tarde lenta y rosa.

                          Oro de sol entra por la ventana

 

y Danae, indiferente y ojerosa,

siente el alma trasida de desgana

y se deja, pensando en otra cosa."

 

Desejo voltou a cruzar os braços. A boca de Segundo vitimava os tapas numa abocanhada final. Sorveu ruidosamente o restante do café. Levantou-se de sobressalto. Pegou de surpresa Desejo que se distraiu vendo a boca de um Corpo de uma Niña comer, vorazmente, um palmerón de chocolate. A xícara de Segundo tombou desajeitada na mesa, enquanto ele calçava as guantes. Ajeitou  o  nó desfeito da bufanda. Desejo viu quando ele, a passos largos,  rompeu  a primeira porta, depois a segunda, quase que instantaneamente, deixando entrar um vento frio no El Aire e um vento quente sair à  rua.  Corpo Segundo desapareceu na calçada cinza que levava à Plaza Mayor. Os olhos de Primeiro perceberam que, junto com o frio, ele havia deixado para trás o livro sentado na cadeira. Foi inevitável. Alucinados os olhos correram o ambiente 5x3. Na barra Corpo Indiferente contava moedas; duas mesas adiante três Corpos Jovens falavam alto. Corpo Velho estava afundado no jornal e a sua frente  Corpo de Niña se dividia entre o palmerón e o café com chocolate, ambos na mesa próxima à barra. Ao lado das máquinas de cigarro e de música  Corpos Enamorados se observavam mutuamente, com languidez explícita e roxa. Desejo agiu rápido, murmurou algo no ouvido de Primeiro, depois avançou sobre o jornal ao lado da xícara suja de um restinho do que foi o Irish Coffe, e jogou-o na cadeira da mesa vizinha. O livro sentado quase se sufocou. Corpo Primeiro levantou-se sem pensar, obedeceu ao Desejo. Vestiu o casaco lentamente enquanto os olhos anotavam todos os movimentos dos outros corpos. Colocou-se a boina preta rodando  em torno de si, no retângulo do ambiente. Era o momento. Primeiro e Desejo tinham que fazer o trabalho em sintonia. Pegaram o jornal sobre a cadeira. Dentro do jornal aburrido o livro úmido. Em menos de dois passos ganharam a rua. Corpo Primeiro ganhou agilidade movido por Desejo e  juntou ao peito Ángel  González  em  Palabra sobre Palabra,  a morirse de ganas. Agarrados os dois riam como se um só fossem – Corpo e Desejo. De igual se animaram quentes jornal e livro.

 

No céu cinza boreal uma lâmina de gelo disforme  gotejava.

 

" ENTREACTO

 
No acaba aqui la história.

Esto es sólo

Una pequeña pausa para que descansemos.

La tensión es tan grande,

La emoción que desprende la trama es tan

Intensa,

Que todos

Bailarines y actores, acróbatas

Y distinguido público,

Agradecemos

La convencional tregua del entreacto,

Y comprobamos

Alegremente que todo era mentira,

Mientras los músicos afinan sus violines. "

             [...]

 


Os poemas do conto são do Poeta Ángel González, extraídos do livro 
Palabra Sobre Palabra, 5a. edição - 1998,  Editora Seix Barral, S.A. 
Córcega,  Barcelona.

 

 

 

Divina Reis Jatobá
Enviado por Divina Reis Jatobá em 07/07/2007
Reeditado em 07/07/2008
Código do texto: T555828
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