Empatia

Naquela noite, Sandoval demorava-se a chegar. Cecília já não se podia com o adiantar das horas e, por fim, desfalecia no surrado sofá de corvim vermelho...

Duas e trinta já batiam e nada do marido. Um ressonar vago e uma espiada de soslaio no relógio... Uma negação, uma mentira qualquer à vigília do sono, ungüento a abrandar a aflição no peito... Ele já deveria estar chegando... Novamente desabava, combalida pela exaustão do dia, pela dureza do trabalho, a energia dos meninos, que não lhe permitiam um segundo de desatenção, um descanso para a carcaça que se surrava com o passar dos anos. Pouco a pouco, a rotina doméstica, as horas a fio debruçada sobre o tanque, as fraldas, as pilhas de roupa a passar, o cheiro de gordura, a falta de amor próprio, tudo isso lhe afastava o frescor da pele, o viço dos cabelos, o brilho dos olhos, enfim os predicados todos que outrora seduziram e arrebataram o amado.

Na outra banda da cidade, num “dancing” bastante fuleiro, Sandoval se esbaldava em goles de cerveja, e abraços fartos, e decotes fartos, e fartos beijos... Ele era um figurão no pedaço. Sempre bem-apanhado, corte elegante, cabelos engomados, bigode do cão, verdes olhos cabotinos e conversa sempre afiada...

Lá para as tantas, ele se lembra de que estará no batente na manhã seguinte e faz menção de partir, sendo obstado pelos bons companheiros que o convidam a mais uma rodada. Frente à resolução do amigo, eles não relutam em bradar-lhe:

- Covarde, sempre foge no bom da festa!

- Muito agradecido mesmo pelo convite, e pelo elogio, mas já é tarde; aliás, daqui a pouco, já será cedo!

E assim respira e parte, a chamado da consciência, dos meninos, da santa esposa que ama...

- Já vai, Sandoval? Por que não fica só mais um pouquinho?...

Resistir aos apelos inflamados dos amigos de copo até que não é tarefa impossível, mas dizer não a uma pergunta tão doce, quase sussurrada, isso, sim, é penoso...

Quatro e quinze. Cecília, já na cama, confere os ponteiros... Um suspiro resignado. Vira-se para o lado e, ao tentar campear o sono novamente, escuta o giro da chave na fechadura. É Sandoval que chega. Caminha sorrateiro, entra na ponta dos pés, despe-se em movimentos lentos, cuidadosos. O cheiro de bebida impregna a atmosfera... Ao beijo singelo do marido em seu ombro, Cecília finge-se dormente... Logo já não finge mais... Dorme de fato. Dorme ao lado de seu homem, para mais um dia que chegará, para mais uma mesa a pôr, os meninos a trocar, os afazeres a dar cabo, a vida adiante, os sonhos a plantar... Enfim, enfim, enfim... O Marido? Ela o ama de todo... E sente-se amada.

Éder de Araújo
Enviado por Éder de Araújo em 07/07/2007
Reeditado em 08/07/2008
Código do texto: T555602
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