O PSICÓLOGO E O PASSARINHO*
Olhou de novo para as montanhas que se avistavam para depois da represa. Era uma visão majestosa. Quase compensava a noite mal dormida. Abriu o maço que carregava na mão. Dez cigarros. Tinha que comprar outro na rodoviária. Acendeu um e fumou-o devagar olhando para as casas de veraneio do outro lado das águas. Deviam estar a uns 700m de distância. Quando voltasse tinha que pegar um tempo livre para nadar até lá.
-“Bom dia, Seu Adriano.” – falou Seu Geraldo, o faz tudo da clínica e um dos motivos da sua insônia:- “Bom dia.” - “O sinhô têm um cigarro prá me emprestá?” –“Tenho sim, pega aí. E Senhor está no céu, já falei. Não precisa chamar assim não. Leva mais um para depois do café.” –“Brigado, mas não desacostumo. Questão de respeito.”
E lá se foi seu companheiro lavar o rosto na pia do lado de fora da casinha onde dormiam. Além de repelente e inseticida, não podia esquecer de trazer tampão de ouvido e viseira. O cara roncava a noite inteira e levantava umas dez vezes para urinar. Podia, lógico, pedir para ir para o quarto dos conselheiros lá em cima. Deu a última tragada olhando para um gavião que sobrevoava a represa. Não, não ia fazer isso. Apesar dos problemas, aprender com ele não tinha preço. O que o velhinho não sabia sobre clínica não valia a pena saber. Tinha 58 anos e era internado desde os seus 20 por causa de drogas e alcoolismo. Também entendia muito de vários outros assuntos. Hidráulica, mecânica, instalações elétricas, alvenaria, teologia (sabia o Novo Testamento praticamente de cor), psicologia. Só não conseguia ficar sóbrio se não estivesse internado. “Não há nada de novo debaixo do Sol”. É, Salomão, você tinha razão. Lembrou-se dos textos que leu na faculdade. Casos como o dele eram usados como justificativa para os manicômios desde o final do século XIX.
Foi caminhando pela longa subida que ia dar nos dormitórios. A sua direita estava a imensa horta e alguns internos já enchiam os regadores no tanque que ficava aberto para isso e molhavam as hortaliças e flores. –“Bom dia, Seu Adriano! Bom dia, Seu Adriano! Bom dia, Seu Adriano.” –“Bom dia pessoal.’ Já havia proposto implantar um sistema de irrigação inventado pelos israelenses que dispensaria o trabalho destes 16 internos. Achava uma sacanagem terem que acordar todo dia 15 minutos mais cedo do que os outros para fazerem esse serviço. Sem contar que tinham que fazer isto no pouco tempo que tinham para si no final da tarde. Era muito simples. Uma mangueira de borracha comprida que ficasse ao lado das plantas. No lugar onde tivesse um alface, uma couve ou outro, teria um furo de onde escorreria a água. Foi recusado porque a ideia era fazer com que eles acordassem mais cedo e que também fizessem isso no final da tarde. Mesmo este sistema sendo menos eficiente e gastando mais energia. Um sorriso involuntário lhe veio à boca quando lembrou o destino da primeira maquina a vapor. A lenda diz que o Imperador Vespasiano a comprou e nunca a usou. Quando interrogado por que, afinal as obras do Coliseu estavam atrasadas, respondeu:-“Como posso tirar o trabalho dos romanos e dos escravos?”. É, mais uma para se lembrar de nunca falar.
-”Salve, salve, minha gente boa da cozinha. Meu preto passado no pano já está pronto?” A cozinha ficava em frente ao refeitório que ficava ao lado do dormitório. Dali se tinha a melhor visão da represa na propriedade. De vez em quando vinha o pessoal da igreja deles e fazia cultos ali. Que paz era escutá-los olhando para lá.-“Bom dia, Seu Adriano. Porque você atenta a galera? Tá todo mundo doido para tomar um café também. E tem que esperar o sinal.”- perguntou o interno que lhe deu o copo:-“Quer a resposta técnica ou a traduzida?”, -“Primeiro a técnica, depois a traduzida.”, -“Então, tá! A razão de vocês estarem aqui não é só para pararem de usar drogas ou beber. Isso é relativamente fácil. Nosso trabalho é o de remodelar o comportamento para que possam se adaptar o melhor possível ao mundo de hoje e sejam mais assertivos. Em resumo, uma mudança de vida. Não vivemos em uma sociedade igualitária. Muitas vezes, dentro de casa mesmo, todos vão se deparar com situações como esta. Coisas que o outro pode fazer e vocês não. Então precisam aprender a lidar com isso. A versão traduzida dessa conversa mole é: eu tomo café antes dos outros pela mesma razão que o cachorro lambe suas bolas. Eu posso! E aproveita e me dá o pão com manteiga também. Mas este é porque eu vou sair cedo.” O menino foi pegar as coisas rindo. Pela milionésima vez se perguntou se esta abordagem sincera era a melhor. Sentia que tinha bons resultados neste um ano que trabalhava ali. Ganhou algumas transferências e mal-entendidos que uma postura mais distanciada teria evitado. Mas como ficar representando um papel quando passava 15 dias internado com eles. Tudo bem que tinha acesso a celular, o que lhes era proibido. Podia fumar a noite. Mas fora isso era praticamente a mesma vida.
Foi em direção do quarto dos conselheiros no alto do morro. Passou pela pequena praça que funcionava como área de convivência. Era o fumódromo, único lugar onde a terapia nicotínica era permitida. Uma vez a cada uma hora aproximadamente. Como funcionário contratado tinha mais liberdade quanto a isso, mas voluntariamente partilhava essa limitação com os internos. Ali era a alma do lugar. Onde as personalidades realmente apareciam. Debaixo da imensa paineira que ficava no centro da pracinha era que as verdadeiras intervenções eram feitas.
O quarto dos conselheiros fazia parte da administração da clinica. Em uma construção comprida ficavam o escritório , o consultório, o quarto dos internos que estavam no turno da cozinha e o deles. Este era o melhor embuste que ele já vira. Cada cliente desembolsava cerca de R$ 1500 por mês. Quando passavam na escala da cozinha tinham que trabalhar 13 a 14 horas por dia. E disputavam a tapa esse serviço! Pagavam para que a clinica lhes tirasse o couro. Era uma briga toda semana com os conselheiros. Eles querendo colocar os que gostavam de trabalhar nos serviços mais pesados e ele buscando que justamente esses ficassem com mais tempo livre para irem nas reuniões e atendimentos. Se quando ele voltasse o senhor que era cozinheiro profissional estivesse lá de novo ia ter um ataque. Ah ia!
Pegou os documentos que precisava levar no consultório. Falou com um deles sobre as atividades que deveriam substituir as que ele conduzia durante os seis dias que ficaria fora. Ficou um bom tempo olhando para o resto do lugar. O morro continuava e para cima uns vinte metros tinha sido desmatado e plantado milho. Esta ia ser a segunda safra. Já saiam rebeldes as primeiras folhas do chão aqui e ali. Bem no alto ainda era mata nativa. Para o lado ficavam vários chiqueiros, um galinheiro e um cercado com alguns caprinos. Depois disso, cerca de uns 70 metros, era vegetação natural. Mesmo sendo da propriedade não se podia fazer nada lá. Protegida pelo Ibama. Dali já tinha visto sair tucano, gibão, porco selvagem e até onça. E mesmo assim tinha uma escala só para recolher madeira caída nesta selva. Que o povo adorava pois podiam fumar o quanto quisessem no meio do mato. Ao lembrar disso já sacou um e foi até a pracinha.
Fumou-o sem pressa. Quando terminou os primeiros internos já vinham subindo com seus cigarros na mão. Armou o isqueiro:-"Vamos gente, todo mundo fazendo biquinho para mim." Era horrível, mas como gostava de ver a cara de satisfação deles ao darem a primeira tragada do dia. só depois da segunda ou terceira é que começavam a conversar. O carro já ia sair mas não resistiu a esse burburinho e acendeu outro. Assim que se levantou e jogou a bituca na lata com água que servia de cinzeiro, ouviu: Plóft!
Quando olhou para baixo, não acreditou. Um pequeno filhote de passarinho havia caído da árvore, provavelmente do ninho. Logo todos se juntaram ao redor da pobre ave com as maiores expressões de piedade. Sentiu também pena do pobre animal. Tanto porque teria que ter cuidados intensivos para uma chance de recuperação ínfima. Como as 70 pessoas internadas aqui. Estatisticamente seriam apenas 14 que estariam sem usar drogas ou beber um ano após a saída. Apenas dois daqui a cinco anos. 21 um dia encontrariam alguma forma de viver em abstinência, se não total pelo menos parcial. Esta era apenas mais uma internação. Os outros trinta e cinco morreriam de overdose ou por doenças ou violência decorrente dos vícios.
-"Seu Adriano, o João está chamando o senhor para sair!"- gritou do refeitório um interno. Tomou uma decisão:
-"Gente, esse passarinho se não for cuidado vai morrer. Alguém se responsabiliza por isso. Sabendo que a maior probabilidade é dele morrer. E de se sobreviver não conseguir voar."- ninguém se manifestou. Fez a mesma pergunta três vezes sem resposta. Fez o que lhe pareceu mais humano. Deu um violento pisão na pequena ave, a matando imediatamente. Quando olhou para ao lado, depois de pegar o pequeno cadáver esmagado do chão, viu os olhares de indignação e incredulidade de cerca de 40 pessoas.
-"Vocês queriam o que? Deixar o animalzinho agonizar porque ninguém se dispôs a cuidar dele? Até semana que vêm."
Três dias depois recebeu um telefonema do dono da rede de clinicas:-"Então, o Arlindo vai te cobrir nos próximos quinze dias lá em Bragança. Você vai ter que vir aqui para Ituverava."
-"Mas porque?"- o lugar era um inferno, quente, fechado, mo meio da cidade
-"Não entendi, um negócio de um passarinho..."