Vida Loka

Zé Maria atropelou uma família! Pai, mãe, filho, filha! Zé Maria atropelou uma família! Atravessavam a rua, todos, juntos. Lado a lado, pai e mãe. Lado a lado, filho e filha. E Zé Maria atropelou toda a família. A mãe comia um pastel, o pai bebia uma latinha, o filho brincava com a bola e um sorvete saboreava a filha. Zé Maria ouvia o som, mas alto do que devia. Seus olhos estavam na estrada, mas não era o que ele via. Zé Maria via o que ouvia, via o som ou o que ele lhe transmitia. Estava embalado e na batida se perdia. E assim não houve tempo, atropelou aquela família. O sinal estava aberto, em sua defesa ele dizia. Assinou a ocorrência com trêmula caligrafia. Muita gente o cercava no entorno da delegacia. Em altos brados acusavam: atropelou toda uma família!

No carona uma moça de coxas grossas ainda havia. O delegado perguntou-lhe o que de tudo ela sabia. Talvez um pouco transtornada, já que em resposta ela sorria. No momento do acidente nada vi, ela dizia. A cabeça se encontrava entre as coxas do Zé Maria. Ante a sinceridade da moça tudo se esvaia. O delegado compreendeu o motivo da imperícia. Lamentou as perdas, preocupou-se em conter a multidão. Chamou reforços, que rapidamente contiveram a população, que agora apedrejava o prédio da delegacia. Tudo por causa do Zé Maria. Libertino, imprudente, irresponsável. Acabou com um sonho, acabou com aquela família.

O pai era operário. A mãe vendia quentinhas. O filho seria atleta, enquanto a filha doutora seria. O pai tinha dois empregos. A mãe era crente. O filho era bom moço e a filha ajudava os carentes. O pai dava esmolas. A mãe alimentava os sem-teto. O filho cantava para uma velhinha com câncer. A filha escrevia cartões de Natal para criancinhas da África. Zé Maria se divertia com a moça simpática. Na hora, chegou a ouvir batidas em seu carro. Pensou que fosse o efeito, só via estrelas. Seu carro foi fechado no meio da estrada, achou estranho. “Populares desejavam o linchamento”, afirmava um homem que era fanho.

A testemunha disse que o carro seguia depressa. “O sinal estava aberto?” –“Sim, mas a rua é pacata”, ele dizia. Pra piorar pro Zé Maria, a testemunha ainda disse que o carro fazia ‘esses’ na pista. O delegado não teve dúvidas, mandou Zé Maria pro xadrez. “E a moça, o que a gente faz com ela?”. O delegado olhou para a moça e sorriu pra ela. “Libera a mocinha que ela não tem nada com isso”. A mocinha, no entanto, preferiu não sair da delegacia enquanto a multidão não seguisse seu rumo. Também precisava de carona para casa, o que mais tarde seria prontamente oferecido pelo delegado, que ficou preocupado com sua integridade. Oferecido e aceito.

Agora, no xadrez aguarda o Zé Maria. Pelo menos até o outro dia. É que a fiança ele pagaria e a Justiça, então, o liberaria. No outro lado da cidade, no cemitério, houve choro e gritaria. Todos pediam Justiça pro Zé Maria.

Ele era filho de não sei quem, mas figura importante, alguns diziam. Ia se safar, todos se esqueceriam. Apenas mais um caso de patifaria. O advogado demonizou aquela família. O pai bebia uma latinha, devia estar embriagado, ele, sim, é o culpado. As crianças foram deixadas para trás, eles não ligaram para elas. Meu cliente é inocente, a culpa é da família. Ainda por cima interromperam um momento sublime que vivia. Tivessem parado no sinal, meu cliente a moça satisfaria. Por isso, seu juiz, vamos acabar com essa putaria. Nem parentes eles têm para se propor uma reparação.

O juiz deu um basta em toda aquela verborragia. O negócio aqui é apurar o dolo do Zé Maria.

Réu primário é meu cliente e tem bons antecedentes.

O juiz olhou para a lei e viu o que ela reservava ao réu à sua frente. Fez o máximo que pôde para reparar a sociedade ante à conduta daquele traste. Considerou, ainda, a condição de Zé Maria semelhante à de alguém que havia bebido, já que, a seu ver, encontrava-se embriagado pelo prazer que a moça o proporcionava no momento do acidente, tanto que sequer se deu conta do que havia feito. Mas, ao fim, constatou que para o réu a pena ainda saiu bem branda, e que pouco tempo ele passaria preso. Brevemente, sairia dali e, mesmo que impedido pela pena que lhe fora imputada, rapidamente estaria nas ruas, na direção de algum volante, alheio aos riscos e à responsabilidade da atividade, maduro para vitimar outras famílias decentes.

E, assim, surgiram dois novos empregos na praça, deixados pelo pai. Alguém viu a oportunidade de vender quentinhas. Outro craque revelado seria. E, na praça, uma doutora a menos haveria. Os mendigos também receberiam menos esmolas, e os sem-teto teriam que procurar um pouco mais por alimento.

A velhinha com câncer se entristeceu, porque não havia mais ninguém que para ela cantasse. Assim, pouco tempo depois, foi para o além, para com seu amigo encontrar-se. As criancinhas da África, por outro lado, não conseguiam mesmo compreender o que diziam os cartões...

Numa rua pacata, à noite, um carro com uma tatuagem ‘Vida loka’ canta pneu e segue em alta velocidade, ao som de um pancadão…

Daniel A Vianna
Enviado por Daniel A Vianna em 25/02/2016
Reeditado em 12/04/2016
Código do texto: T5554447
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