Conselhos do Irmão

Era meia-noite. Resolvi sair de casa para dar uma corridinha. “É meia-noite. É perigoso”, gritou-me o Estado, meu amigão de sempre.

Resolvi dar de ombros e seguir em frente. Calcei meu par de tênis de corrida. Era um tênis novo, o que fez com que o Estadão, meu amigão, torcesse o nariz e ficasse ainda mais bravo com minha atitude. Uma afronta, certamente. No íntimo pensei na possibilidade de se tratar de mera encenação, considerando o imposto pago na compra do pisante.

O Estado, em seu íntimo, poderia estar, na verdade, dando gargalhadas, esperando que eu repetisse a tributação, caso o tênis fosse roubado...

“Um ato falho”, diria meu psicanalista, o qual contratei há alguns meses a fim de fazer-me compreender esse meu relacionamento. Já tinha cansado de lhe dizer que estava a fim de dar um tempo com a atividade estatal, que ela não cumpria suas promessas de segurança e bem estar. Achava mesmo que poderia viver melhor sozinho.

Meu psicanalista pensou muito e, finalmente, ditou-me que tal atitude não seria muito sensata. Desconfiei, recordando-me do fato de que ele possuía um cabide de emprego dado pelo próprio Estadão e que, portanto, não teria a isenção necessária para emitir um parecer justo e imparcial. Por outro lado, onde encontrar um psicanalista isento hoje em dia? Qual deles não possuía dupla jornada, como pedagogos, professores; ou trabalhando de plantão em entes públicos? Preferi não lhe dar ouvidos. Comparecia ao seu consultório por hábito. Permanecia sem tomar os remédios que, para a minha mais completa paranóia, serviriam apenas para que eu acreditasse que o Estado, ao final das contas, era bom e necessário. Um fim em si. E todos os que tomavam remédios prescritos por psiquiatras eram fiéis escudeiros do Estado. Nada tinham do que reclamar, a não ser naquelas passeatas do tipo “fogo amigo” que, vez por outra, o próprio Estadão, às escussas, como quem não quer nada, lançava no ar, sempre acompanhadas de pronunciamentos indignados de seus sujeitos ativos que diziam que o povo precisava se controlar.

Boa. Muito boa.

Não para mim.

Deixei de tomar aqueles remédios. Enxergo a verdade agora. E ela está límpida diante de meus olhos.

E de meus pés. Os tênis ainda funcionavam. Estavam em perfeito estado de conservação. Estado. Repeti a palavra, agora para me referir à maneira como se encontra o par de tênis que utilizarei. Isso. O Estado é um estado de coisas, uma disposição de coisas. E elas estão ali porque já estavam antes mesmo de você nascer, exceto uma ou outra alteração rasa. Em regra, não vemos as mudanças ocorridas nesse estado de coisas, se é que elas existem. Se é que se fazem perceptíveis. Se é que podemos notá-las.

Em regra, não. Em regra, somos sujeitos passivos. Até mesmo quando achamos que mudamos as coisas, quando pintamos nossas caras, não de palhaços, ou não necessariamente. Enfim... até mesmo nesses momentos é certo que nada mudamos. Somos fantoches.

Por isso, resolvi pôr meu par de tênis e correr à meia noite.

E o Estado que cuide de minha segurança. Ele deve me manter vivo, são e salvo. Deve manter minha mulher ilesa quando de minha chegada. Deve garantir que o ar esteja puro para que eu possa aproveitar a corrida noturna. É preciso que o ar esteja puro para que eu possa respirar melhor, a fim de que possa melhor expulsar as toxinas. Ele se interessa por isso também, ou devia. Ou não. Fico pensando: É melhor ter mais cancerosos, a fim de que haja necessidade de mais políticas e recursos a serem desviados, ou é melhor ter menos para parecer melhor na fita?

Ser ou não ser?

Que dúvida, hein?

Saio de casa e vou em direção à rua. Os meliantes de plantão devem saber que se trata de uma atividade teste, ou de um ato de rebeldia. Nesse caso, somos cúmplices. Mas fica aí a dúvida: eles me deixarão passar, por uma questão de solidariedade, tipo “é nós, parceiro”, ou tomarão meus calçados e minha carteira, tipo “é nós, parceiro, viu como o Estado é falho meerrrmo?”.

Isso me leva a uma reflexão muito profunda.

Penso um pouco. Olho para minha mulher, para o cobertor quentinho, comprado pelo dobro do preço, já que metade dele é de impostos arrecadados pelo grande irmão...

O Estadão olha para mim e lança um sorriso jocoso.

Ok, você venceu.

Volto para dentro de minha casa e vou deitar em minha cama de cinquenta por cento de ICMS, eu acho, pode ser mais.

Amanhã, terei mais um dia de trabalho. Afinal de contas, preciso estar vivo e com saúde para poder pagar meus impostos.

Daniel A Vianna
Enviado por Daniel A Vianna em 24/02/2016
Reeditado em 03/12/2016
Código do texto: T5554388
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