O Dia Seguinte

Lembro de uma época em que meu salário não pagava um aluguel, quando ainda morava no apartamento sustentado pelos meus pais e trabalhava numa empresa comum, um lugar ruim que eu não suportava, que eu não via a hora de abandonar. Lembro de um almoço qualquer em que eu peguei tomates da travessa de prata de um buffet por quilo enquanto uma amiga me contava que eles eram ótimos para prevenir o câncer de próstata. Desde então, tomates sempre visitaram meu prato, mesmo sem eu gostar do sabor.

Era uma época em que eu ainda não pintava os cabelos, em que minha imagem nu no espelho do banheiro ainda era a do meu reflexo. Ingênuo, dizia que acrescentar alguns anos à minha idade nunca seria um problema.

Os caminhos eram os mais variados, havia uma lista interminável de opções, entre elas, a melhor de todas, a da mudança. A possibilidade de mudar é abundante quando mais nos falta coragem e é escassa quando mais nos sobra conhecimento.

Hoje, como ontem, acordei com o som da rua, porque já não há motivos para alarmes. Demorei um bom tempo nos lençóis suados de verão, antes de checar mensagens insignificantes no celular e de tomar um longo banho sem pressa.

A casa continua vazia. A louça suja de ontem permanece na pia. A lata amassada de cerveja ainda descansa na mesinha da varanda. Os comentaristas esportivos da TV repetem as mesmas frases de campeonatos que já terminaram.

Caminho descalço para tomar um ar encostado na grade de ferro, olhando prédios vazios, ouvindo gritos distantes da quadra esportiva de uma escola, vendo carros e motos com suas buzinas cheias de compromissos, vendo ruas e avenidas que já percorri atrasado, com a cabeça em projetos e reuniões que na verdade nunca aconteceram.

Volto para a sala e encontro a fotografia do sucesso, um abraço forte entre chefe e funcionário, meu sorriso branco ostentando uma conquista já desbotada pelo tempo. A imagem impressa com moldura de ferro prateado é o troféu que já não existe mais.

Há uma conta a pagar sobre a mesa, ao menos uma obrigação para os longos dias que estão por vir. Na geladeira, a comida de dias atrás está chegando ao fim, preciso ir às compras, pesquisar novas receitas, colocar boa música para tocar e usar parte do meu dia para cozinhar pensamentos. Fecho a porta da geladeira e amigos, viagens e festas me encaram com sorrisos de alegria e juventude. Toco nas fotos presas por ímãs e já não me reconheço.

No sofá, vejo o livro pela metade mas prefiro o celular de notícias repetidas e histórias que não levam a lugar algum. A TV passa filmes que já vi ou que nunca verei. Busco os álbuns novos de bandas que um dia gostei e eles não me dizem nada. Tento ouvir os antigos que já amei e também já não fazem mais sentido algum.

Volto a checar as mensagens insignificantes que alguém mandou no meio de uma reunião, ou a caminho do trabalho, ou de um cabelereiro qualquer. Respondo com preguiça e sem vontade. Os planos para o fim de semana já não me interessam, as frases do colega de trabalho não fazem sentido para mim, as piadas continuam sem graça.

Nuvens cinzas ocupam o azul do céu, cortado de tempos em tempos pelo som de aviões que nunca enxergo. Trovoadas surgem à distância e a luz esbranquiçada que ilumina o apartamento diminui trazendo sombras que já fazem parte de mim. Penso em acender a luz mas não vejo motivos. Penso em fechar a janela mas o som da chuva e o respingar da água podem mudar o meu dia. Penso em me sentar na varanda e sentir se a chuva de verão continua gelada como era décadas atrás. Quem sabe não vou para a rua molhar os pés, sentir a camiseta colada no corpo e o cabelo pesado na testa. Mas não saberia o que dizer ao porteiro quando voltasse para a casa.

O telefone toca mas não quero atender. Não tenho o que responder, muito menos o que perguntar. Não quero saber.

O som dos trovões já se sobrepõe ao dos aviões e posso ver mãos femininas fechando janelas e vidros nos prédios vazios e abandonados pela rotina da vida. Mas não tão abandonados quanto o meu.

Vou ao banheiro mas volto porque não estava com vontade. Sinto uma leve dor de cabeça mas não quero tomar remédio. Estou diminuindo porque me falaram que faz mal ao corpo.

Outro avião cruza os céus mas novamente não consigo enxergar. Um trovão estoura bem perto daqui. As plantas da varanda sacodem e ouço portas batendo, pessoas falando, carros ligando, portões rangendo.

Eu poderia correr no parque, mas não com essa chuva. Eu poderia ir ao cinema, mas o trânsito com certeza irá piorar.

Pego um livro da estante mas lembro daquele que deixei pela metade.

Ligo de novo a TV mas os filmes ainda são os mesmos.

A sala está ainda mais escura. Quase não enxergo as letras do livro que tento continuar. O porta retrato está perdido numa sombra negra no canto da estante. Os trovões ficam mais distantes e as plantas param de balançar. Os sons da rua já não têm tanta pressa assim. Começa o chiado da chuva. E a cidade, em respeito, fica em silêncio. Apenas a água e os trovões, estes cada vez mais esparsos. A chuva chega chiando para fechar o dia.

Meus pés tocam o piso molhado da varanda. Sinto o vento agora não tão quente e os pingos não tão gelados quanto eu lembrava.

Hoje é quinta-feira, mas poderia ser segunda. Talvez meus inimigos estivessem todos certos. Amanhã será tudo igual.

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Daguito Rodrigues
Enviado por Daguito Rodrigues em 19/02/2016
Reeditado em 25/02/2016
Código do texto: T5548557
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