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A BORDO DO VOO 2531
 
Era uma quarta-feira, final de verão, eu havia chegado ao aeroporto às 6:20h da manhã e o Embraer 190 já aguardava no pátio; costumava decolar no horário, às 7:00h com destino a Belo Horizonte.
 
Seria uma viagem curta, voltaria no mesmo dia, portanto não tinha bagagem pra despachar e após o check-in dirigi-me à sala de espera, aguardando autorização para o embarque. O aeroporto é pequeno, único na região, suportando aeronaves de pequeno e médio porte. Fiquei por ali observando o movimento de outras pequenas aeronaves. Não ouvi a última chamada para o meu vôo, mas percebi o movimento dos outros passageiros e dirigi-me também ao portão onde fomos retidos por um momento, aguardando que outro passageiro fosse conduzido, em cadeira de rodas, pelos cerca de cem metros até o avião. Instantes depois, fomos liberados e seguimos em fila indiana para o embarque.
 
Devo confessar que meu padrão de humor pela manhã não é dos melhores. Meio forçado, devolvi o sorriso à aeromoça, murmurando um “bom dia” padrão. Meu assento ficava ao fundo, do lado direito, uma fileira após o passageiro com embarque especial, do outro lado do corredor central; o garoto aparentava ter cerca de dez anos. Ele estava acompanhado por uma mulher, que supus ser sua mãe. Enquanto guardava minha bagagem de mão, tentei entender o que havia de errado com aquele garoto. Parecia meio estranho. Pouco depois percebi também que tinha deficiência nos movimentos, na coordenação motora, mantendo os membros numa posição que não era o normal, mas tinha os olhos irrequietos, atentos a qualquer movimento ao seu redor; fiquei curioso em saber qual o problema dele, mas não me manifestei a respeito.
 
Todos os passageiros haviam embarcados, mas aguardamos por mais algum tempo, quando chega um passageiro, ofegante, trazendo consigo uma valise de mão. Dirigia-se ao fundo do avião. Pede desculpas a uma passageira por ter deixado bater a valise em seu ombro. Chegando ao fundo, olha pra mim, depois confere o passageiro ao seu lado, olha rápido pra a mãe dele... Por fim confere a numeração de seu assento, guarda a valise e senta-se na poltrona logo à minha frente, mesma fileira do passageiro especial, separados apenas pelo corredor central.
 
O garoto tenta virar a cabeça pra direita, em direção ao Ofegante (Um rapaz de cerca de trinta anos, não sei o nome dele – o chamarei assim). Creio que conseguiu girar no máximo 25º, auxiliado com os olhos também totalmente voltados pra direita, conseguindo fixar o passageiro ao lado. Este devolve o olhar por alguns segundos e ambos voltam a olhar em frente. Sr Ofegante reclama algo sobre calor e pela demora na decolagem; pra mim estava uma boa temperatura e o vôo não estava atrasado. O garoto olha novamente pro Sr Ofegante, sorri e volta a olhar em frente.
 
Eu comecei a achar interessante o movimento daqueles dois. Sempre gostei de observar o comportamento das pessoas. Interessante como podemos saber mais sobre os outros apenas observando-os em seus momentos de distração. Simpatizei-me logo com aquelas duas figuras. Continuei a observá-los, sem nenhum contato.
 
Vieram as instruções de vôo pela aeromoça, e em seguida a decolagem. Seria um vôo de aproximadamente 1:15h de duração.
 
O garoto, novamente, volta seu olhar para o Sr Ofegante. Este, sem virar a cabeça, estende o braço esquerdo, punho fechado, levando-o até o meio do corredor. Repentinamente estende o polegar, fazendo o sinal de positivo, ou “jóia” como se dizia no meu tempo. Depois aproxima o punho do garoto, recolhe o polegar e, num movimento rápido, volta a estendê-lo, virando todos os dedos para cima, mas desta vez segurando um pirulito. Sim ele era um mágico, ou pelo menos tentava ser. Os dois sorrindo, cruzam os olhares novamente. O garoto não conseguia fazer movimento pra aceitar o presente. Com o indicador o Sr Ofegante indica sua mãe para que ela pudesse autorizá-lo receber o doce. Ela sorri e agradece. “Deixe-me ajudá-lo” – diz. Retira o papel e coloca o doce na boca do garoto. Este olha novamente pro Sr Ofegante, sorrindo. Não conseguia falar nada, mas estava claro a sua satisfação com tudo aquilo. Não emitiam palavra ou som, mas cá de onde eu estava, era nítida a perfeita comunicação entre eles.
 
Alguns minutos depois, ignorando o aviso no teto para manterem os cintos, o Sr Ofegante o tira e aproxima-se do garoto. Provoca uma distração com a mão esquerda e com a direita saca um estetoscópio do bolso, leva as olivas auriculares aos ouvidos e sem se preocupar com o lado, leva a campânula à própria cabeça. Com a outra mão próxima à boca simula som de vento, cortando o vazio. Finge estar apreensivo com o resultado. De forma idêntica tenta auscultar a cabeça do garoto, procurando em vários pontos algum som significativo. Ele para no alto, bate levemente com o dedo na cabeça do garoto. Ouve-se o som de algo caindo, batendo em obstáculo, até cair – “blow blow blow crash”. Era mágico e um excelente ventríloquo. O Sr Ofegante finge assustar-se com o som. O garoto ri alto e pela primeira vez ouvi o som de sua voz. Eu também ri, mas baixo, sem atrapalhar a “conversa” dos dois. Neste momento a aeronave sacoleja um pouco mais devido à turbulência. De longe ele vê a aeromoça acenar para que ele se sente de forma adequada e coloque o cinto de segurança.
 
Não demora cinco minutos, lá estão os dois novamente, em sua “animada conversa”. Sr Ofegante saca sua furadeira imaginária e ao som agudo produzido por ela, simula apertar e desapertar parafusos no garoto, simulando um conserto – biiiz biiiz. Quanto mais o garoto ria, mais eu adorava vê-los. Era uma sintonia perfeita. Neste momento percebi que a mãe tinha os olhos marejados pela emoção de ver seu filho relacionando-se com outra pessoa de forma espontânea, sem preconceitos, sem regras; simples assim.
 
Muitos parafusos apertados depois, Sr Ofegante decide ensinar a batida de samba, batendo uma caneta no meio e na lateral de uma bandeja de plástico, produzindo diferentes sons... e desagradáveis; um tanto também pela má execução. “Senhor...” – ele ouve a aeromoça lá no outro extremo. Ele a olha, “percebe surpreso” os objetos em suas mãos, pensa um pouco e os coloca na mão do garoto e, girando-se pra todos os lados, aponta várias vezes na direção dele dizendo ser ele o responsável pela bagunça. Em seguida, senta-se e afunda-se na poltrona, tentando esconder-se. O garoto ria até descerem-lhe as lágrimas. Dava pra perceber que em sua vida nunca, além de sua mãe, haviam lhe dado tanta atenção, fazendo-o sentir-se tão importante.
 
Assim foi a viagem, com brincadeiras, truques de mágica, ventriloquismo e outras invenções por parte do Sr Ofegante. Ao final, após o pouso, somos informados para permanecermos sentados até o desembarque do garoto. Neste momento o Sr Ofegante diz:
 
- Conversamos a viagem toda, mas ainda não sei o seu nome...
- Lucas – responde a mãe dele.
- Lucas... Lindo nome. Posso tirar uma selfie nossa? – pergunta já inclinando-se, ficando lado a lado com Lucas, e se fotografando – Essa é especial. Nunca me esquecerei de você. E espero poder encontrá-lo mais vezes – ele pensa um pouco – Vou mandar uma cópia desta selfie pra você. Pra qual o número devo mandar?
 
A mãe responde o número do celular dela. Os três sorriem. A aeromoça e um comissário de bordo aproximam-se. Enquanto Sr Ofegante acena sinalizando uma continência com dois dedos, Lucas é carregado pelo comissário até a parte dianteira onde esta sua cadeira de rodas. Por motivos operacionais, o desembarque dele não pode ser feito pela porta traseira.
 
No meio do corredor, a mãe de Lucas volta-se pro Sr Ofegante e vem até ele.
 
- Obrigado pelo que fez por meu filho. Há muito tempo não o via sorrindo. E hoje ele deu boas risadas. Talvez você não saiba o tanto que fez bem a ele. O senhor foi muito gentil lhe dando atenção.
 
- Desculpe-me mas nada disso foi forçado. Eu realmente gostei do garoto. Como se diz por aí, meu santo bateu com o dele. Sinto-me como se fossemos grandes amigos, de longa data. Acredite: A satisfação em conhecê-lo foi maior em mim que nele. Tenho nele um amigo, grande amigo. Espero vê-lo mais vezes.
 
Ela sorri, pega-lhe as mãos e beija. Em seguida segue Lucas que já começava ser levado pra fora do avião.
 
Eu me emocionei com toda aquela cena. É a vida que continuava a me surpreender. Num mundo de tanto ódio e rancores, ganâncias... Fui presenteado com cenas simples mas verdadeiras. Percebi então que há amizades que nascem assim, ‘despropositadas’, sem status, puras, francas... Verdadeiras.
 
Mas... Sinto estar esquecendo algo. Ah, sim... Lá no início não sabia o que estava errado com o garoto. Agora sei: O meu preconceito. Neste dia aprendi muito. Abri meu olhar, ver o mundo de forma diferente. Modifiquei pra melhor meu jeito de ser. Aquele garoto tem, e merece ter, seu lugar garantido na sociedade. Ele me ensinou mais do que muitos que se dizem meus amigos, aliás, posso dizer que poucos o são. Mesmo seguindo por caminhos diferentes, passei a admirar aquele garoto, com sua forma de viver e se relacionar, suas dificuldades, mas com uma fome de viver e aprender invejável. Quem sabe algum dia nos encontremos por aí e possamos “conversar” também e... Quem sabe, sermos até amigos.
 
 
 

Fev/2016