A NOVA GUERILHEIRA AMPLIADA E MELHORADA

A GUERILHEIRA

Gama Gantois

No início dos anos 70, comecei a trabalhar num grande jornal do Rio de Janeiro. Tudo o que almejava era me consagrar como um grande jornalista. Para isto, precisava de duas coisas. Primeiramente trabalhar na profissão, isto eu já tinha conseguido. Em segundo lugar, de uma grande reportagem. Mas, tinha que ser algo grandioso, de abalar as estruturas da nossa sociedade. Só havia uma dificuldade. As grandes reportagens eram entregues aos jornalistas de renome. Aos principiantes como eu, cabia cobrir acontecimentos sem nenhuma importância. Fatos irrelevantes.

A carreira de jornalista é muito árdua. Ninguém está preocupado com a renovação profissional. O jornal é um negócio como outro qualquer. Ele vive de vendas e dos anunciantes, e para ter tudo isto é preciso trazer no seu bojo, boas reportagens, bons artigos, além, é claro da credibilidade. Para ter boa reportagem e bons artigos, tem que possuir em seus quadros, jornalistas de renome. Portanto, ao jovem profissional só lhe resta saber esperar e aguardar uma oportunidade. Quando esta aparecer, agarrá-la de unhas e dentes.

Certo dia, quando escrevia o horóscopo para a edição do Jornal para o dia seguinte, veio a noticia bomba. Fora escolhido para entrevistar uma famosa guerrilheira do Araguaia presa nas dependências do Destacamento de Operações Internas - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Esse departamento era temido por todos os brasileiros. O DOI/CODI era um órgão Inteligência subordinado ao Exército, especializado na repressão do governo brasileiro durante o regime inaugurado com o golpe militar de 31 de março de 1964, a ditadura militar, também chamada de "Anos de Chumbo".

Era destinado a combater os falsos inimigos internos que, supostamente, ameaçavam a segurança nacional. Sua filosofia de atuação era pautada na Doutrina de Segurança Nacional, formulada no contexto da Guerra Fria nos bancos do “National War College”, instituição norte-americana, e aprofundada, no Brasil, pela Escola Superior de Guerra (ESG).

Por causa disto, ninguém se atreveu a fazer uma entrevista com ela. Todos os grandes jornalistas recusaram a pauta. Ninguém queria arriscar. Vivíamos naquele tempo uma ditadura bastante cruel. Foi então que pensei; Ali estava a grande oportunidade, com a qual sonhei por toda a minha vida. Finalmente, poderia mostrar o meu talento jornalístico. Aceitei a incumbência com muita fé e coragem. Muito mais com a primeira do que com segunda. A verdade era que minha coragem era nenhuma, mas, era a minha grande chance.

Durante o trajeto entre a sede do jornal e a dependência do DOI-CODI um pensamento me assaltou subitamente. O que leva uma pessoa nesse caso, uma mulher abraçar a luta armada, numa tentativa inútil de derrubar um regime sólido, bem estruturado contando com apoio das potências capitalistas do mundo? Será que vale a pena trilhar um caminho tão perigoso, e muitas vezes sem volta? Abandonar a família, os amigos, para perseguir um sonho que pode se transformar num pesadelo? Com certeza, essa pobre moça, deve ser uma camponesa rude, inculta, condenada pelo sistema a trabalhar no campo eternamente. Provavelmente foi levada pela conversa dos velhos comunistas, que lhe acenaram com a possibilidade da construção de uma sociedade mais justa, fraterna, sem classes sociais, onde toda a produção é socializada entre o povo. Esse tipo de sociedade não existe. È a grande utopia de Carl Marx, dos comunas fanáticos. Pobre mulher. Deve estar arrependida do seu gesto insano.

Depois de uma longa espera fui conduzido à presença da prisioneira e quando, finalmente ficamos frente a frente, confesso fiquei bastante surpreso.

Ela era exatamente o contrário de tudo aquilo que eu tinha imaginado a seu respeito. Fisicamente era frágil estatura mediana, olhos negros profundos, mas seu corpo irradiava aquela luz própria das pessoas determinadas. Sabia perfeitamente o que estava fazendo. Apesar da situação adversa em que se encontrava, transpirava otimismo e entusiasmo pela causa abraçada. Seu estado de ânimo era altíssimo. Era culta, inteligente e muito sagaz. Depois das conversas preliminares, iniciei a entrevista com a pergunta que estava me matando de curiosidade.

- Quem é você?

Nasci numa cidade do sertão pernambucano, à margem do Rio São Francisco. Éramos seis irmãos, mas, quatros morreram antes de completarem cinco anos de idade. A morte do caçula, acredito, acabou com a vida de minha mãe. Nada tendo para amamentá-lo, meu irmão sugava o peito seco que lhe era oferecido. Não havia mais leite, mesmo assim minha mãe tentava desesperadamente salvá-lo.

Quando ele morreu, ela ficou abraçada ao seu corpo se recusando a aceitar a sua morte. Dizia que ele estava dormindo. Foi um custo tirá-lo dos seus braços. Nunca mais foi à mesma. Ficava horas e horas olhando fixamente para o infinito. Minha mãe buscava meu irmão na linha do horizonte. Acho que não tinha mais lágrimas e chorava por dentro.

Nasci, portanto, nesse bolsão de miséria carimbada para o quartinho de empregada ou para a prostituição. Felizmente não precisei vender o corpo por um prato de comida. Sobrevivi como sobrevivem milhões de pobres em nosso país. Enfrentei gigantescas adversidades que povoam nosso cotidiano, perverso de fome, miséria e sofrimento. Minha vida no campo não foi nada fácil nem muito diferente dos outros camponeses. Ganhava um salário miserável e era explorada pelos coronéis, donos das terras e senhores da vida e da morte. Fui contaminada pelo uso indiscriminado do agrotóxico que éramos obrigados a usar. De positivo nessa vida miserável aprendi a amar a natureza. Conheço todas as flores, todos os cheiros, sei quando vai chover, quando o sertão vai continuar seco, conheço o sorriso e as lágrimas do povo sofrido, o barulho da cascavel, o mugir das reses. Foi pelas mãos dos padres que aprendi que o Evangelho luta contra a opressão. Pela leitura do velho comunista Graciliano Ramos, aprendi a importância de um coração generoso e de uma alma libertária. Foi então, a partir daí que comecei a pensar ser possível construir um mundo cuja igualdade de direitos seja para todos. Um mundo como diz Casaldáliga: “Livre de todas as cercas que nos impedem de viver e de amar”. Não aceitei meu destino. Fui à luta. Trabalhava e estudava. Passava fome. Às vezes ficava dias sem comer. Mas não deixava de comprar livros. Devorava-os. Procurava ler o máximo que podia. Depois passei a freqüentar as bibliotecas públicas e sempre estudando passei a construir um sonho. Um sonho onde todo o excluído pudesse ser alguém. Romper o cerco dessa burguesia dominante que construiu um modelo de sociedade para seus descendentes. Formada comecei uma luta para que todas as pessoas tivessem a mesma oportunidade, sem, contudo ter que passar pelas dificuldades que passei. Percebi que a direita não desejava mudanças. Muito pelo contrário, queria a manutenção desse sistema perverso. Fui buscar guarida no campo da esquerda. Não da chamada esquerda festiva, mas a esquerda ideológica. Quando estávamos quase conseguindo construir uma sociedade mais justa, fraterna, igualitária veio o golpe. A Cia. Americana, com os gorilas brasileiros impediu de realizarmos nossos sonhos; eu não poderia deixar tal coisa acontecer. Fui à luta. E foi essa luta que me trouxe a este cárcere.

-E você acha que o comunismo resolveria os nossos problemas sociais, políticos e econômicos?

-Vou lhe responder meu caro jornalista com outra pergunta. Se o capitalismo fracassou porque não experimentarmos uma nova doutrina? Porque temos que seguir o modelo Norte-Americano que só serve pra eles? Será que o povo brasileiro não percebe que os americanos querem nos transformar em colônia? Que bloqueiam o nosso desenvolvimento? Veja o caso da China, só se tornou grande depois que expulsou os capitalistas que durante séculos exploraram o país. Aqui na América Central, a nossa querida Cuba está se tornando um grande país depois que os americanos, foram expulsos do país. Por que esse fato não pode ocorrer no Brasil. E depois só podemos dizer se acertamos ou não, se colocarmos em prática.

- O que você espera da vida? Quais são as suas perspectivas? Você se arrepende de ter abraçado o comunismo como salvação para o Brasil?

- Bem, meu caro jornalista. O que espero da vida! Nada. Nada espero dessa vida, pois, sei que o meu destino já está traçado. Os gorilas já me condenaram. Na guerrilha matei vários militares. Isto eles jamais irão me perdoar. Eles têm sede de sangue.

_Bem, mas você matou.

-Sim, eu matei. Mas, estávamos em guerra. E na guerra é matar ou morrer. Eu pergunto: Se matei eles também mataram uma infinidades de companheiros nossos. Inclusive mataram de maneira covarde, cruel o nosso ícone, Carlos Lamarca. Um dia a história irá resgatar o patriotismo desse grande brasileiro, e colocá-lo no Pantheon dos grandes heróis pátrios. Assim, como com foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Execrado no Brasil colônia pelos portugueses, exaltados pelos Republicanos brasileiros. Quanto à segunda pergunta creio já tê-la respondido. Se me arrependo por ter abraçado o comunismo com salvação da pátria. Claro que não. A doutrina marxista prá mim está bastante clara. Nós não podemos hoje em dia ignorar a Mais – Valia a Luta de Classe, a Dialética Histórica. Sem esses elementos claros em nossas cabeças fica muito difícil compreendermos a marcha histórica. O proletariado jamais será livre. E o que eles são na sociedade contemporânea? Qual a sua importância? Eu respondo. Nada. Não são nada. Apenas uma massa moldada ao bel prazer da burguesia faminta, ávida por lucros. Meu caro jornalista, tanto os trabalhadores urbanos quanto o campesinato não passam de escravos modernos. Escravos do século XX. È preciso que façamos uma transformação profunda nas estruturas sociais, econômicas e políticas do nosso país. Precisamos romper os grilhões que nos prende ao passado. Que nos prende a burguesia cafeeira do século XIX. Precisamos de um NOVO ACORDO DE TAUBATÉ AS AVESSAS. Inverter a logica do inferno, onde o Diabo sempre ganha. Nossa Democracia não existe, meu caro jornalista. È um grande engodo. Veja meu amigo. Onde já se viu operário votar no patrão para dirigir o país? O operário e campesinato elegem forças contrárias aos seus interesses, e sendo assim, a burguesia vai se mantendo no poder e ampliando seus poderes contra o operariado e camponês que continuam vivendo na extrema miséria. Sendo explorados pelo Patrão e pelo Coronel. Veja meu caro Jornalista à situação do campo. O Brasil possui cerca de 8,5 milhões de quilômetros quadrados de terra. Somos o 5º maior país do mundo, Desta magnífica extensão possuímos cerca de 70% de “terra cultivada”. Terra cultivada é terra boa para agricultura e pecuária. No entanto, desta magnífica amplitude, apenas 10% são áreas produtivas. 90% não existem nada plantado, nada criado. Então eu pergunto: Porque na se faz a Reforma nessas terras? Sabe qual a razão, meu caro jornalista? Porque latifúndio associado ao capitalismo nacional, cumprindo ordens do capitalismo internacional não deixa. E sabem por que não deixa? Em primeiro lugar com medo do Brasil dominar o mercado de alimentos. Em segundo lugar porque eles perderiam um grande mercado interno.

Então, criaram a mentalidade no povo brasileiro, que Reforma Agrária e coisa de comunista. Nesse caso, a América do Norte é um pais comunista, pois, os americanos fizeram a sua Reforma Agrária, no século XIX. Os brasileiros repetem feitos papagaios tudo o que seu mestre mandar. Os jovens brasileiros, pensam como americanos, dançam como americanos, se vestem como americanos, mas, não vivem como americanos. Entendeu?

E tem mais. A Renda Nacional, o produto Interno Bruto tem que ser mais bem dividido. A grande riqueza nacional não pode ficar concentrada nas mãos de 10% da população. Meu caro jornalista este é o sistema mais perverso deste planeta; - O SISTEMA CAPITALISTA. A lógica é que toda produção, toda renda seja distribuída igualmente entre todos. Que os trabalhadores sejam os donos de toda a produção nacional, pois afinal, quem promove a riqueza do país é o trabalho e nunca o capital, este só explora o trabalho. A nossa educação pública de base é um lástima porque é a escola do trabalhador, camponês. Os filhos da burguesia vão estudar nos colégios particulares mais caros, portanto, saem mais bem preparados do que os filhos do proletariado que estudaram nas horríveis escolas públicas. Ai vem o vestibular ceifar os sonhos do assalariado. Quando alguém consegue furar esse bloqueio maldito, como eu, servimos de exemplo, para mostrar ao mundo a nossa bela democracia. Vejam aquela camponesa chegou ao nível universitária.

È isto aí meu caro jornalista. Entendeu a razão porque falamos que só o Comunismo salvará o Brasil?

Quando ela acabou, confesso estava impressionado com aquela mulher. Comecei a sentir por ela uma profunda admiração. Creio mesmo que cheguei a amá-la a partir dessa entrevista. Sempre tive um fascínio pelas pessoas cultas, inteligentes. O capitão encerrou a entrevista alegando ter que levá-la para fazer exames médicos. Voltei outras vezes para vê-la. Foi então que resolvi me envolver com aquela mulher. Ficamos perdidamente apaixonados.

Iniciei então, uma luta sem trégua, sem quartel pela sua libertação. Contratei os melhores advogados, apelei para as Organizações das Nações Unidas e para comunidade internacional sem lograr êxito.

Um dia ao visitá-la achei que algo de anormal estava acontecendo. Havia no ar uma atmosfera pesada. Naquele dia não fizemos planos para o futuro, com era o nosso hábito. Apenas ficamos por longo tempo abraçado, mudo, imóvel, numa tentativa inútil de ouvirmos o coração um do outro.

Não sei por quanto tempo permanecemos naquela posição. Lembro-me que de repente, o tal capitão surgindo não sei de onde, deu a visita por encerrada.

Quando era levada de volta para a sua cela, vi no seu rosto um olhar tão triste, que tive a certeza ser aquela à última vez que a veria com vida.

Sai dali deprimido e amargurado Sabia ser aquele o epílogo do meu romance. O capítulo final de um grande amor. Um misto de ódio e revolta e se apossou do meu espírito. Meu coração exigia vingança. Tinha gosto de sangue na boca.

Tentei voltar a vê-la em outras ocasiões sem sucesso. Nunca mais a vi. Desapareceu como tantos outros prisioneiros no porão maldito da ditadura assassina.

Entrei para a Vanguarda Revolucionária, para não deixar morrer um lindo sonho. Tornei-me um guerrilheiro. Não podia deixar um sonho tão lindo morrer. O sonho de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária, onde as pessoas não precisem morrer ou ser torturadas pelo simples fato de não concordarem com a política vigente. Até hoje guardo essa fantasia dentro de mim. Lutei e lutei muito pela democratização do país. Hoje aguardo serenamente a chegada da eternidade, como última esperança de me unir novamente ao grande amor a minha vida.

Um dia, tenho certeza, estaremos todos juntos, além, muito além do infinito, pois, o nosso amor foi forte demais para ser vivido numa só vida.

Gama gantois
Enviado por Gama gantois em 17/02/2016
Código do texto: T5546812
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