Eram Outros Carnavais (EC)
Cresci ouvindo de meus avós, que a Quaresma era uma época de recolhimento, jejum e abstinência. Através de algumas contadoras de causos, soube que antes os demônios festejavam o sofrimento de Cristo. A esta celebração pagã davam o nome de Carnaval, porém o pior acontecia com quem participasse da tal festa. O infeliz iria para o inferno, quando morresse.
O fato de saber de tudo isso, me fazia imaginar o inferno como um rio cheio de labaredas e dentro dele uma porção de gente cozinhando em tachos enormes. Todos com as mãos postas, suplicando misericórdia.
O que mais me assustava era pensar nos diabos de olhos grandes, chifrudos, usando capas pretas e roupas vermelhas. O rabo em forma de flecha e nas mãos, um garfão para averiguar o ponto de cozimento do povo pecador.
— Quem peca, queima eternamente no fogo do inferno. — Diziam os mais velhos.
Eu perguntava:
— A gente num sai nem pra bebê água? — Credo!
Ficava apavorada, imaginando o quê aquele povo teria feito. Quais seriam esses pecados tão cabeludos, eles teriam cometido para queimar assim? Muitas vezes antes de dormir, eu fazia a contabilidade dos meus, a fim de avaliar se poderiam me levar para aquele fogaréu. A ideia de castigo me atormentava.
Hoje, acredito que os adultos não tivessem a intenção de provocar tanto medo nos pequenos. Talvez não imaginassem que isso pudesse refletir negativamente na vida de uma criança e persegui-la, talvez pela vida afora.
Morando na cidade e já na escola, via as crianças de minha rua fazendo colares de macarrão colorido, preparando as fantasias para ir à Matiné do "Guia Lopes Clube" e pensava comigo mesma:
—Tadinhos, vai todo mundo direto pro inferno!
No domingo de Carnaval, eu estava indo fazer entrega de uma bandeja de doces, quando encontrei-me com muitas crianças fantasiadas. Havia uma enorme quantidade de baianas, piratas, colombinas, odaliscas...Tudo lindo e colorido, até me convidaram:
— Vamu pro clube Mariinha, hoje criança não paga!
Caçoaram de mim, quando perguntei se não tinham medo do fogo do inferno e depois seguiram para o baile. Parei na escadaria da igreja e deixei de lado a bandeja com os doces. Dali avistei a criançada lá dentro do clube, no andar superior da sede da Prefeitura Municipal. Lembro-me até hoje da primeira vez que ouvi: “
O jardineira por que estas tão triste
Mas o que foi que te aconteceu?
Foi a Camélia que caiu do galho;
Deu dois suspiros e depois morreu!
Muito contrariada, eu fiquei ao ver que tudo quanto era criança da cidade estava aproveitando a festa, menos eu, que estava sozinha ali nas escadas da igreja. Então imaginava:
— Que graça teria eu ir para o céu sozinha? Sim, porque segundo eu aprendi, aquele povo todo estaria condenado!
As músicas cada vez mais animadas, a alegria contagiante! Eu nem sabia mais o que pensar, pois a minha vontade era estar lá dentro e participar daquela festança, ficar alegre e pular muito!
Dali de onde estava, avistei o padre Murilo entrando na sacristia. Totalmente dominada pelo som da música daquela “festa proibida” nem vi a hora que fui correndo até onde o padre estava:
— Sô Padre... Ieu posso priguntá um trem pru sinhô?
— Pode sim, menina, o que quer saber?
— O sinhor é padre, intão deve di sabê, né?
— Saber, o quê?
Morrendo de vontade cair na folia, perguntei:
— O sinhor pode mi dizê, si o fogo dos inferno é quente dimais da conta?
—...
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Outros Carnavais
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