Marcas

Por mais que se pense, não é possível descrever as marcas que a infância deixa na vida da gente. Trago comigo inúmeras recordações que fizeram parte dela. Porém, o que deixa cicatrizes profundas que às vezes voltam a ser feridas, são as coisas ruins que aconteceram.

Lembro-me, como se estivesse acontecendo agora, as brigas de meus pais, os amores não correspondidos, meus sonhos que nunca se realizaram. Frustrações diversas, complexo de inferioridade.

Meu pai era um homem muito severo e machista, mas minha mãe tinha dificuldades em se curvar às vontades dele. Em outras palavras , ela não aceitava mesmo. Eram discussões intermináveis, iam noite afora, às vezes com ameaças claras de facadas, pauladas, machadadas.

Havia um garoto que me encantava. Mas seu prazer era me humilhar, tentava de todas as maneiras me nivelar por baixo, e o pior e que sempre conseguia, eu saia chorando, com o coração em frangalhos.

Éramos muitos irmãos, e sendo uma família pobre, chegamos a passar fome. Não foram raras as noites em que fui dormir de barriga roncando. Roupa, material escolar, calçados, brinquedos, festas, nem pensar. O dinheiro que entrava não era suficiente nem pra comer. Dentre outras coisas que nunca tive mesmo querendo muito, destaco a boneca barbie. Eu queria uma, não importa se médica, manicure, bordadeira, meu sonho era ter uma. Jamais tive, e ainda levei uma surra que me fez várias marcas pelo corpo quando falei desse desejo ao meu pai. Claro que depois disso guardei só pra mim todos os outros.

Eu era filha do meio, num total de sete irmãos. Herdava as roupas dos mais velhos, e as passava para os mais novos em seguida. Minha mãe fazia as roupas a mão, costurava sob o luar quando estávamos dormindo. Era uma boa mulher, honesta, trabalhadeira, carinhosa conosco. Apesar de não tolerar mandos e desmandos do meu pai, jamais permitiu que faltasse a ele roupas em condições de uso, limpas e passadas. Às vezes tinha que remendá-las, pois eram tão surradas que acabavam rasgando.

Hoje sou adulta, tenho meus filhos, meu emprego ,minha vida. Mas dói ainda, é que às vezes as marcas são feridas que voltam a sangrar.Esses e outros fantasmas sempre me assombram todas as vezes que mexo na caixa das lembranças e me deparo com meu passado, vendo a mim mesma em tempos idos. Sei que todas as pessoas têm fantasmas, por isso sigo em frente, mesmo com marcas.

‘’Mas é claro que o sol vai voltar amanhã’’

Renato Russo