Onde morrem as vontades
A voz do outro lado estava habitual, calma, até diria, rotineira. Isso fez com que todos aqueles fantasmas povoassem sua cabeça. Tinha verdadeiro pavor ao normal, ao habitual, no habitual as coisas morrem, o costume mata a paixão de viver. Sempre achou ordinárias as pessoas que se enchiam de rotina e sem perceber estavam apenas completando os dias da semana que viravam meses e anos a fazer crescer os pelos da barba e as rugas no canto do olho. Não podia ignorar aquele telefonema indiferente, coração que bate acelerado e gosta de viver com tudo cada parte do dia, não se aprisiona em escritório, e se algo tenta fazer-lhe aos pés fortes amarras, escapa sempre porque aprendeu a dominar a arte dos nós, gostava dos seus apertados o suficiente para se fazer sentir, mas frouxos o suficiente para se saber sempre livre.
Ao encerrar aquela ligação não gostou nada dos impulsos do seu coração. Levantou devagar a tela do notebook e começou a escrever um e-mail.
Era bastante sucinto, porém afetuoso.
Querida Ema, o calor aqui já está insuportável, enlouquecerei se tiver que ouvir mais uma das estórias fatigantes das pessoas com suas vidas repetidas e medíocres que me cercam. Estou indo. até as cinco. Milton.
Um abraço apertado, suficiente para marcar sua camisa azul com o batom vermelho sangue que delineava sua boca.
- Aconteceu de novo? - disse a voz da dona do batom vermelho.
- Sim.
- Foi pior dessa vez, não foi? - a mulher baixou o olhar, parecia triste.
- Você percebeu a urgência, não percebeu? Eu não posso mais continuar, o livro não menciona os passos que devo dar se...
- Vá embora. Não fique pra manter algo que já foi, a lembrança vai com você quer você fique, quer vc tenha coragem de sair.
- Eu te trouxe isso. - Ele falou enquanto entregava a Emma um livro, O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA.
- Vai logo, eu não quero ter que atender mais nenhuma ligação como aquela, sei que aguentamos mais que nossas almas puderam suportar, sua voz estava hab...
-Eu sei. - disse isso e saiu caminhando pro lado oposto ao dela.
Eles sempre agiram como personagem de romance de Jane Austen, mas aquela separação já se poupava de acontecer, sete anos, eles conseguiram sete anos, não se arrastando, dos sete apenas o último se fez habitual, pareciam dois conhecidos antigos que se respeitavam e não mais invadiam o espaço um do outro. Ela ficou parada observando o exemplar velho, já gasto de tantas leituras, ela sempre pensou que o amor deles era como o do romance...ela pensou muitas coisas...
Emma estava rearranjando seu livros no novo e pequeno apartamento, havia passado seis meses daquele e-mail seguida da ligação fria dos dois.
Ela soprou a poeira que se acumulara na capa, segurou com a mão toda as folhas velhas que compunham o seu romance preferido e deixou as páginas caírem, caiu um bilhete, já um tanto amarelado.
Agora, você já tem novas vontades?
Ela juntou o papel e o amassou meio sem vontade e continuou a organizar seus livros, também sem vontade alguma.