Corredores
Um corredor pode ser definido como sendo um espaço estreito, que pode ser longo ou não. A minha fixação com corredores se explica pela existência de um desses espaços que ficou fixado na minha memória desde a juventude.
Era pouco iluminado e servia para ecoar os piores sons que alguém pode ouvir. Ele dava acesso às celas nas quais meus amigos mais queridos e a mulher que mais amei, foram torturados. Gritos que jamais consegui esquecer. Acordo com eles ecoando na minha cabeça.
Na Faculdade formávamos um grupo muito unido, nos idos dos anos sessenta. Wander, Jayme, Ernesto, Marina, Zé Luiz, Camila e eu, Márcio. Eventualmente ao grupo se somavam Lígia, Kátia, Antônio, Maurício e Dênis. Nossos encontros ocorriam, não apenas durante às aulas. Bares, cinema, praia e diversos lugares, com o grupo ampliado ou reduzido. Mas, com frequência.
O início desta paranoia com corredores, ocorreu na Faculdade de Educação, durante uma sonolenta aula. Um funcionário interrompeu a professora e chamou pelo Jayme, que deveria comparecer à secretaria. Ele levantou-se e saiu. Entrevi alguns sujeitos esperando-o. Saí correndo atrás e tomei um safanão que me jogou contra a parede. Marina veio logo em seguida e, também foi contida. Vimos o Jayme pela última vez, saindo pelo corredor.
Não era incomum que estas coisas acontecessem, mas eu nunca havia presenciado. Wander, colega de classe, aproximou-se dizendo:
- Talvez não seja nada. Logo, ele estará de volta.
Não foi o que aconteceu. Fomos à delegacia, sendo devidamente ignorados. Num quartel do exército próximo e não deixaram sequer entrar. Passaram-se dias e Jayme continuava desaparecido.
Marina e eu ficamos muito próximos. Ela contou-me da relação entre ela e Jayme e que talvez estivesse grávida. Eu, escondia meu amor por ela. Continuávamos a nossa inútil procura.
Após algumas semanas, um corpo apareceu numa praia próxima. Era o meu amigo. Cheio de hematomas pelo corpo. Foi dito que não se sabia de detenção alguma e que rapaz morreu afogado. Quanto aos hematomas, são normais em casos de afogamento.
Marina desesperada não parava de falar sobre a detenção, gritando:
- Canalhas, repressores, assassinos. Mataram o pai do meu filho.
Tentávamos acalmá-la, pois isto atraia atenção sobre ela e nosso grupo. Foi exatamente o que aconteceu.
Após alguns dias começaram a desaparecer pessoas do grupo: Marina foi a primeira, seguida de Zé Luiz, Dênis e Kátia. Todos pertenciam a grupos de luta contra a ditadura. Eu, não pertencia a grupo nenhum, mas tinha amigos em vários deles. Frequentava até algumas reuniões. Isto, me expunha muito mais do que se pertencesse a algum específico, mas eu não tinha noção disto.
O meu desespero era total. Não conseguia assistir às aulas. Vagava pelos corredores. Encontrei Wander.
- Calma, meu camarada. Não chame tanta atenção sobre você. Vai acabar se dando mal. Quem avisa amigo é...
- Vai à merda, Wander. Deixa de ser insensível.
Certo dia, saindo de casa para tentar assistir algumas aulas, fui abordado no ponto de ônibus. Carro de polícia. Quem viu, não reagiu. Pensaram tratar-se de bandido. Me jogaram na parte traseira do furgão, com um capuz na cabeça. Após rodar muito, chegamos, não sei onde até hoje e me doparam com uma injeção.
Acordei amarrado numa cadeira, pés e mãos, em frente ao maldito corredor. Ouvi durante dias e noites gritos. Assisti a passagem de pessoas ensanguentadas, nuas, às vezes desmaiadas, outras gemendo. Algumas olhavam para mim, olhares de súplica. Não sei se percebiam que me encontrava imobilizado. Acho que reconheci o Dênis, não tenho certeza.
Somente me permitiam sair para ir ao banheiro. Havia perdido a noção de tempo. Depois de volta ao corredor. Não dormi durante todo esse tempo. Meu espanto foi imenso quando ao meu lado chegou Wander. Era um deles, traidor, miserável. Parou bem em frente a mim e disse:
- Márcio, eu te conheço. Você não passa de um grande babaca. Nunca se decidiu por nenhum dos grupos subversivos. É amiguinho de todo mundo. Muito bem, resolvi te mostrar o que fazemos com eles. Acho que nunca mais vai esquecer esta aula. Está aqui há três dias. Parece mais, não é ? Vai sair hoje. Não adianta tentar contar pra ninguém. Se insistir vamos espalhar que você é nosso colaborador. Não vou aparecer mais na Faculdade, mas existem outros iguais a mim por lá. Aliás, se eu fosse você trancaria a matrícula e sumiria por um tempo.
Ele já estava se afastando, quando voltou e, com um sorriso nos lábios disse:
- Vem passando alguém especial. Era Marina. Nua, toda ensanguentada.
- Coitadinha abortou, não sei o que aconteceu. Acho que está com hemorragia. Vamos levá-la ao doutor. Aliás, ele estava lá, acompanhando.
Outros amigos desapareceram. Não sei quais foram presos. Os que foram, provavelmente morreram. Marina, tenho certeza. O seu corpo foi entregue aos seus familiares. Cortesia do Wander, ou seja lá qual for o seu verdadeiro nome. Disse que foi levada apenas para interrogatório e suicidou-se na prisão. Ela andava com gente ruim, subversiva, inclusive o namorado. Por isso foi chamada a prestar esclarecimentos, estando na cela aguardando sua vez. Não suportou a pressão.
Muito tempo já se passou. Estou com quase oitenta anos. Me internei voluntariamente num abrigo para idosos. Nunca tive exatamente uma profissão, nem formei família. Não terminei nenhuma das faculdades que iniciei. Sonho sempre com corredores. Tornei-me sonâmbulo. Acordo sempre olhando para o corredor.
Um corredor pode ser definido como sendo um espaço estreito, que pode ser longo ou não. A minha fixação com corredores se explica pela existência de um desses espaços que ficou fixado na minha memória desde a juventude.
Era pouco iluminado e servia para ecoar os piores sons que alguém pode ouvir. Ele dava acesso às celas nas quais meus amigos mais queridos e a mulher que mais amei, foram torturados. Gritos que jamais consegui esquecer. Acordo com eles ecoando na minha cabeça.
Na Faculdade formávamos um grupo muito unido, nos idos dos anos sessenta. Wander, Jayme, Ernesto, Marina, Zé Luiz, Camila e eu, Márcio. Eventualmente ao grupo se somavam Lígia, Kátia, Antônio, Maurício e Dênis. Nossos encontros ocorriam, não apenas durante às aulas. Bares, cinema, praia e diversos lugares, com o grupo ampliado ou reduzido. Mas, com frequência.
O início desta paranoia com corredores, ocorreu na Faculdade de Educação, durante uma sonolenta aula. Um funcionário interrompeu a professora e chamou pelo Jayme, que deveria comparecer à secretaria. Ele levantou-se e saiu. Entrevi alguns sujeitos esperando-o. Saí correndo atrás e tomei um safanão que me jogou contra a parede. Marina veio logo em seguida e, também foi contida. Vimos o Jayme pela última vez, saindo pelo corredor.
Não era incomum que estas coisas acontecessem, mas eu nunca havia presenciado. Wander, colega de classe, aproximou-se dizendo:
- Talvez não seja nada. Logo, ele estará de volta.
Não foi o que aconteceu. Fomos à delegacia, sendo devidamente ignorados. Num quartel do exército próximo e não deixaram sequer entrar. Passaram-se dias e Jayme continuava desaparecido.
Marina e eu ficamos muito próximos. Ela contou-me da relação entre ela e Jayme e que talvez estivesse grávida. Eu, escondia meu amor por ela. Continuávamos a nossa inútil procura.
Após algumas semanas, um corpo apareceu numa praia próxima. Era o meu amigo. Cheio de hematomas pelo corpo. Foi dito que não se sabia de detenção alguma e que rapaz morreu afogado. Quanto aos hematomas, são normais em casos de afogamento.
Marina desesperada não parava de falar sobre a detenção, gritando:
- Canalhas, repressores, assassinos. Mataram o pai do meu filho.
Tentávamos acalmá-la, pois isto atraia atenção sobre ela e nosso grupo. Foi exatamente o que aconteceu.
Após alguns dias começaram a desaparecer pessoas do grupo: Marina foi a primeira, seguida de Zé Luiz, Dênis e Kátia. Todos pertenciam a grupos de luta contra a ditadura. Eu, não pertencia a grupo nenhum, mas tinha amigos em vários deles. Frequentava até algumas reuniões. Isto, me expunha muito mais do que se pertencesse a algum específico, mas eu não tinha noção disto.
O meu desespero era total. Não conseguia assistir às aulas. Vagava pelos corredores. Encontrei Wander.
- Calma, meu camarada. Não chame tanta atenção sobre você. Vai acabar se dando mal. Quem avisa amigo é...
- Vai à merda, Wander. Deixa de ser insensível.
Certo dia, saindo de casa para tentar assistir algumas aulas, fui abordado no ponto de ônibus. Carro de polícia. Quem viu, não reagiu. Pensaram tratar-se de bandido. Me jogaram na parte traseira do furgão, com um capuz na cabeça. Após rodar muito, chegamos, não sei onde até hoje e me doparam com uma injeção.
Acordei amarrado numa cadeira, pés e mãos, em frente ao maldito corredor. Ouvi durante dias e noites gritos. Assisti a passagem de pessoas ensanguentadas, nuas, às vezes desmaiadas, outras gemendo. Algumas olhavam para mim, olhares de súplica. Não sei se percebiam que me encontrava imobilizado. Acho que reconheci o Dênis, não tenho certeza.
Somente me permitiam sair para ir ao banheiro. Havia perdido a noção de tempo. Depois de volta ao corredor. Não dormi durante todo esse tempo. Meu espanto foi imenso quando ao meu lado chegou Wander. Era um deles, traidor, miserável. Parou bem em frente a mim e disse:
- Márcio, eu te conheço. Você não passa de um grande babaca. Nunca se decidiu por nenhum dos grupos subversivos. É amiguinho de todo mundo. Muito bem, resolvi te mostrar o que fazemos com eles. Acho que nunca mais vai esquecer esta aula. Está aqui há três dias. Parece mais, não é ? Vai sair hoje. Não adianta tentar contar pra ninguém. Se insistir vamos espalhar que você é nosso colaborador. Não vou aparecer mais na Faculdade, mas existem outros iguais a mim por lá. Aliás, se eu fosse você trancaria a matrícula e sumiria por um tempo.
Ele já estava se afastando, quando voltou e, com um sorriso nos lábios disse:
- Vem passando alguém especial. Era Marina. Nua, toda ensanguentada.
- Coitadinha abortou, não sei o que aconteceu. Acho que está com hemorragia. Vamos levá-la ao doutor. Aliás, ele estava lá, acompanhando.
Outros amigos desapareceram. Não sei quais foram presos. Os que foram, provavelmente morreram. Marina, tenho certeza. O seu corpo foi entregue aos seus familiares. Cortesia do Wander, ou seja lá qual for o seu verdadeiro nome. Disse que foi levada apenas para interrogatório e suicidou-se na prisão. Ela andava com gente ruim, subversiva, inclusive o namorado. Por isso foi chamada a prestar esclarecimentos, estando na cela aguardando sua vez. Não suportou a pressão.
Muito tempo já se passou. Estou com quase oitenta anos. Me internei voluntariamente num abrigo para idosos. Nunca tive exatamente uma profissão, nem formei família. Não terminei nenhuma das faculdades que iniciei. Sonho sempre com corredores. Tornei-me sonâmbulo. Acordo sempre olhando para o corredor.