FINOS TELHADOS

Escalar o sobrado onde morava sempre fora fácil. Rogério encaixava a ponta do tênis esquerdo em um vão da parede, chegava ao tanque com o pé direito, segurava a calha com a mão direita e, no pulo, atingia o alto do muro com a sola do tênis esquerdo.

Após vencer o muro, Rogério erguia-se e estava diante do telhado - que era o teto do banheiro da empregada - subia naquela cobertura, levantava-se novamente, caminhava devagar, pisando as cerâmicas mais firmes para...no fim do trajeto, invadir o quarto da mãe pela janela.

Além dessa invasão, Rogério gostava de galgar corrimões de pedra; pendurar-se em varais, andar nos galhos da seringueira da rua e, principalmente, alcançar o alto das casas vizinhas, onde muitas vezes encontrava antenas para dobrar. Transformava-as em mosquitos gigantes.

Os vizinhos reclamavam do rastro destrutivo. “Alguém esburacou a casa de Dona Marta”; “Ainda quebra o braço! Ninguém reclama! Cadê a mãe?”; ”Ontem, as filhas de Dona Amélia viram o pirralho urinando do sobrado do seu Amadeu!”

Ele lembrava o dia. O xixi formou um arco. O jato dourado vergou. Foi atingir o chão, lá na frente.

O mijão morava com a mãe e a uma doméstica de 17 anos que dormia nos fundos, preparava o almoço e sabia aguentar a agitação do menino, que variava do chulé espalhado pela casa aos brinquedos quebrados dentro de sapatos.

A mãe, mulher desquitada, dona de um salão de beleza, conduzia a criação do filho de modo meio apático. Gritava, às vezes, e só.

Quando a questionavam pelo desleixo, justificava-se. O salão exigia tanta energia. Armar penteados, coordenar as manicuras, depilar mulheres histéricas. A educação do filho tornara-se algo secundário. Ele aprenderia na escola.

Por essas normas, o filho da cabeleireira crescia e, de escalada em escalada, terminou por quebrar o telhado do banheiro da empregada. Abriu uma fenda tão grande que passava uma cabeça.

Tentou consertar, mas percebeu que se equilibrava sobre a boca da caverna, a toca da nudez da Maria. Nunca a olhara como mulher sem roupa, pelada atrás da vassoura, completamente nua em frente ao apito da panela de pressão. Seria bom vê-la durante o seu banho.

O espião pulou para o quarto da mãe e idealizou como luneta, o longo cano de PVC que sobrara da reforma. O tubo poderia ser introduzido no rombo da telha, e o banheiro seria visível.

Dito e feito, quando a moça chegou, o menino apoiou-se na janela, adaptou o cano à fresta e adquiriu a visão total do recinto. Identificou chuveiro, privada, o bidê ao lado do espelho e o corpo da pelada destoaria das bacias brancas.

A menina tirou a roupa. Ela tinha dois bustos grandes, apontados. Ligou o chuveiro.

O menino notou que o fluxo vertical da água formava um ângulo de noventa graus sobre os peitos da moça. Ângulos retos e obtusos da matemática do quarto ano.

A lembrança da escola desnorteou o espião, embora ele tenha chegado ao primeiro segredo da nudez: as duas cores nos peitos da adolescente. Os mamilos nasceram mais claros do que a pele morena.

Deslocou o cano para uma vistoria mais detalhada. O vapor atrapalhava. A menina abaixou-se para ensaboar o joelho. O tubo viu a bunda da doméstica, aliás, viu o início do corte, que a dividia em duas fatias carnudas e revelava o segundo segredo. Pensou em abóboras. Riu da comparação. O banho continuou.

Passaram alguns minutos e, sem querer, o espião mexeu o cano. A espionada levantou o rosto e tentou entender a circunferência no teto. O que era aquilo? Saiu do chuveiro. Olhou e gritou quando percebeu dois olhos no teto. Gritou o nome do filho da patroa.

Ele puxou a luneta, escondeu o objeto embaixo da cama e julgou estar livre de problemas.

A doméstica reclamou com a patroa. Denunciou a intimidade devassada. Nenhum homem jamais a vira nua, nem o pai quando criança, que a mãe não deixava. Ganhava muito pouco. Iria embora.

A mãe fechou os olhos. Já estava aborrecida por ter recebido três cheques sem fundos. E, quando atendeu a demissão, pensou: “Mais uma descapitalização”. E perpetrada pelo próprio filho.

Ela quis pegar o cinto do ex-marido. Procurar o piolho pela casa e surrá-lo. Melhor solução, depilar a perna do filho com toda a cera quente disponível no salão Mas o estabelecimento exigia tanta energia. Secar cabelos. Conversar com mulheres malucas. Saber o andamento da novela das oito e as últimas fofocas. Caminhar pela fumaça compacta dos cigarros.

O filho tornara-se um problema menor.

Após assistir a doméstica em seu banho, Rogério entrou em um exílio mental. Criou chuveiros. Banhos sempre mornos. Lembrou-se que as pernas da menina se abriram no final. Ele viu os pelos. A coxa dela não terminava. A água passou entre os seios. Tudo naquele instante. A espuma pingava do queixo da criatura.

A mãe contratou uma senhora idosa para tomar conta da casa. Velhas não despertam sexualidade precoce.

Quando Rogério voltava da escola e antes da mãe chegar, ligava a TV no seriado “O Homem Biônico”. O homem tinha mais do que a perna esquerda sem chulé, mais do que o olho direito. Perna e olho implantados com superpoderes, biônicos. Aquela superveloz; o último via o detalhe a quilômetros de distância.

Um olho direito biônico faltou para Rogério durante o banho da amiga.

Ele ainda pensava na utilidade para a perna biônica.

Do livro: As crianças do general Médici

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 03/02/2016
Reeditado em 07/05/2018
Código do texto: T5531931
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