Doce

O Marcos tá pra vir aqui em casa hoje.

Faz três meses já que a gente terminou. Mas tem coisa dele aqui ainda.

No primeiro mês eu não conseguia aceitar a perda. Eu não conseguia lidar com o que tava acontecendo. Era estranho. Completamente. As pessoas tem essa visão de que quando você é a pessoa que termina um relacionamento, você tá bem. Termina porque não gosta mais. Nada disso, eu terminei porque amava. Talvez mais a ele do que a mim. E esse foi o meu erro. Ele me amava também, eu sei. Mas não era a mesma coisa. Nosso relacionamento deixou de ser estável depois do momento em que eu percebi que a minha entrega era maior. Não que eu veja problema nisso, eu acho que o amor não pode ser medido, e que devemos amar com a máxima potência que podemos. Mas, às vezes, parecia até uma competição. Em tudo ele era melhor. O cabelo, o dele ficava ajeitado mesmo quando ele acabava de acordar. Quando a gente saía, ele conhecia todo mundo. Ele era super sociável. Não que eu não seja, mas não consigo agradar a todos. O sorriso dele, era o mais bonito de todos. Ofuscava até. À mim, no caso. Com o tempo, o meu sentimento de inferioridade só aumentou. E era por isso que a gente continuava junto: ele precisava de alguém pra anular, e eu era nulo. Então eu comecei a me sentir preso a este relacionamento de um modo nada agradável, o que culminou no fim.

O segundo mês foi mais de aceitação. De entender que eu já não ia mais acordar com uma mensagem dele de bom dia, que eu já não ia mais ligar pra ele no meu horário de almoço do trabalho, que eu não ia mais ouvir “te amo” antes de dormir. Mas foi mais tranquilo, as dores internas foram diminuindo. Chega uma hora que a gente entende que acabou, que não existe mais nada. E a gente tenta seguir em frente, começando pela segunda gaveta da cômoda do meu quarto. No primeiro dia me doeu muito, todas aquelas lembranças, ainda vivas dentro de mim. Eu guardava tudo lá: a primeira pulseira que ele me deu, assim que fizemos 6 meses, a foto do nosso primeiro encontro, a foto da nossa primeira viagem juntos, a foto do nosso primeiro ano de namoro, a foto do meu aniversário, as flores que ele usou nesse dia pra fazer uma trilha por toda minha casa, a aliança, as cartinhas que ele me entregava, um tsuru que ele fez pra mim, o colar com pingente de chave, duas camisetas dele, a samba-canção que ele sempre usava… Tanta coisa, tanto passado. Levou tempo pra me desfazer das coisas que lá estavam. Cada coisa que eu tirava tinha um toque dele, e doíam quando jogadas fora. Mas era necessário, e eu sabia disso.

Chegamos então no terceiro mês. Eu tive que ligar pra ele. Falar pra vir buscar as coisas que deixou por aqui. Eu não queria mais nada que pertencesse a ele. “Tem umas coisas suas aqui em casa, passa pegar”, eu disse. Ele foi monossilábico: “Tá”. E agora ele deve quase estar chegando. E eu não sei como vou reagir. Eu nunca tinha namorado. Não durante tanto tempo assim. Eu nunca tinha passado dos seis meses. Deve ser estranho encontrar novamente com alguém que você já amou. Eu realmente não sei o que esperar desse encontro. Espero que seja o mais rápido possível, até já deixei as coisas na mesa da cozinha, pra facilitar.

Ele chega. Eu abro a porta e percebo que ele tá mudado, pintou o cabelo, tá com um ar diferente.

- E aí - ele me diz.

- Entra - eu não hesito.

Ele está de bermuda branca e camiseta verde, lindo como sempre. Caminha até o sofá, senta-se e pergunta:

- Como cê tá?

- Eu tô bem, e você?

- Tô melhor. Cada dia melhor. Tô frequentando um psicanalista que tá me ajudando.

- Aé?

- Aham. Não sei pra você, mas pra mim nosso término foi forte.

- Ai, Marcos, claro que foi forte pra mim também né!

- Ah, sim, eu imagino que deva ter sido mesmo. Mas enfim, meu analista tá me ajudando bastante. O término foi foda, sabe? Eu meio que fiquei sem chão. Ele tava me falando disso, que eu precisava me achar, que eu passei muito tempo me empenhando no nosso namoro, que eu só tinha aquela vida, que acabou não dando em nada…

- Desculpa - precisei interromper.

- Por que?

- Eu dizer isso talvez possa ajudar de algum modo, na sua terapia e tal. Mostrar que eu me importo, que não foi fácil pra mim também.

- Ah sim, deve ajudar - ele dizia e pouco me encarava. Saiu em direção ao quarto, dizendo:

- As coisas tão aqui?

- Não, pera aí, tira o sapato.

- Tirar o sapato?

- Sim - afirmo - eu mudei um pouco as coisas no meu quarto. Agora ele tem tapete, daí eu prefiro não usar sapato aí.

- Entendi - disse, já tirando os sapatos e entrando no quarto - Uau. Tá diferente aqui, diferente de como eu arrumava.

- Você só arrumava isso aqui de sábado.

- E você não arrumava nunca - retruca e sorri.

Ele entra em meu quarto e percebo que fica abismado com as mudanças que fiz. As nossas fotos já não estão mais por todo lado. A cama, mudei de lugar. As janelas, agora estão abertas e coloquei uma cortina. Os livros, empilhei todos, quais antes ficavam jogados pra lá e pra cá. Uma luminária na cabeceira da cama.

- Tá bem diferente aqui né?

- Como eu disse, mudei de lugar algumas coisas. Dei uma arrumada.

- Só por que eu vinha aqui hoje? - pergunta mas não me olha. Ele vem mantendo pouco contato visual comigo.

- Não, agora eu tento deixar assim sempre.

Eu o olho por inteiro. Os olhos surpresos e rápidos, observando tudo. A marca de nascença que ele tem próximo aos lábios. A boca pálida. O colar de lobo. A pulseira que eu dei. As unhas roídas. O cabelo jogado pro lado, meio bagunçado.

- Entendi. Agora aprendeu a ser gente.

- Sim, e nem precisei de psicólogo pra isso - digo sorrindo, mas percebo que ele não gostou do que eu disse.

- Que bom. Tem gente que precisa de alguém pra ajudar a se achar, sabia? Acontece mais do que você imagina - diz, saindo do quarto. Vira-se e termina - Aliás, não é psicólogo, é analista.

- Eu não disse pra magoar, tava querendo descontrair.

- Entendi, não conseguiu. E as minhas coisas, tão onde então?

- Lá na cozinha, eu pego pra você - e saio da sala. Ele me segue, já dizendo:

- Eu sei onde fica, vivi aqui durante um bom tempo - e pega as sacolas em cima da mesa - Obrigado.

- Cê já vai?

- Sim, não tenho mais o que fazer aqui, né? Você deixou claro isso da última vez que conversamos há três meses atrás.

- Fica um pouco mais - eu sinto saudade de conversar com ele. Ele me parece tão indefesa. Tão indefesa que ataca a todo momento.

- Pra quê? - ele diz, encarando o chão.

- Não sei… que tal mais um café?

Ele levanta o rosto. Vejo seus olhos marejados. Um sorriso contido, que me diz:

- Cê ainda lembra disso?

- Eu não apaguei a nossa história.

- Que bom - diz, e me abraça.

Ele ainda me abraça do mesmo jeito que me abraçava antes: levemente.

Frágil.

Como o nosso amor.

Kaíque Campos
Enviado por Kaíque Campos em 01/02/2016
Código do texto: T5530214
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