QUINTA FEIRA MAIOR

(continuação de QUARTA FEIRA DE TREVAS)

As nuvens grossas, que ameaçavam tempestade, fizeram com que o sol aparecesse bem depois das oito horas da manhã, acompanhado por uma chuva fina, persistente, daquelas que molham tudo sem fazer muito estrago, mas que atrapalha o ir e vir das pessoas encapotadas, calçadas com galochas e mãos ocupadas com os enormes guarda-chuvas.

Bem antes de clarear totalmente, o escravo do Cel. José Pacheco chegou com a carroça puxada pelo jumento Ferramenta na casa do Comendador Antônio Filgueiras com o enorme cesto cheio com molhos de bredo, cocos, jerimum, curimãs-tainhas, camarão sete barbas e uma lata de banha cheia de mariscos já sem as conchas.

O Coronel e a esposa, dona Filomena, eram padrinhos de batismo de Maria do Rosário, morava na antiga Rua Oitenta e Nove, para os lados dos Afogados e criava peixes e camarões nos currais das terras do seu sítio quando esse se confundia com o Rio Cedros e que faz a ligação com a maré quando invade o mangue do Rio Jiquiá.

Todo ano ele mandava o “jejum” da afilhada e para mais um batalhão, tal a quantidade exagerada do presente.

Seguindo o costume da época, Miguel já estava acordado apreciando o serviço de limpeza das gaiolas dos passarinhos feito por Sebastião, o escravo idoso que fazia quase todos os serviços da casa, e quando ele viu o jumento chegar puxando a carrocinha foi pedir para dar uma volta.

- Sinhozim só pode í si inhô Antoin dexá! Disse-lhe Fabrício, o escravo do Coronel.

Miguel entrou correndo na sala do oratório, onde a família estava reunida rezando as matinas.

- Papai o senhor deixa eu andar na carroça do padrinho?

- Vá, meu filho, mas não precisa correr. Olhe o respeito ao dia de hoje. Mesmo sem ainda ter feito a primeira comunhão, você deve se manter calmo e calado porque é a quinta feira maior, é a semana santa.

- Sim, senhor meu pai.

Miguel saiu andando devagar até sair das vistas do pai, mas chegou correndo ao alpendre.

- Meu pai deixou... Meu pai deixou... Ele deixou eu dar uma volta bem grande... (não custava sugerir um prazer maior...).

- Adispoi q’eu discarregá, eu levo sinhôzim mode dá uma vorta... (e riu com a boca fechada, fazendo aquele som hum, hum, hum tão comum entre os que não tinham o direito de demonstrar sentimentos. Afinal eram escravos...)

Ninguém sabe dizer o que houve, mas o fato é que, com as cestas no chão, Miguel subiu na carroça e quando os escravos entraram na casa levando o carregamento, Ferramenta saiu em desabalada carreira que só parou no portão da casa do Coronel.

Miguel estava completamente molhado e amedrontado apesar de ter gostado muito da experiência.

Pouco tempo depois, chegaram o Comendador Antônio acompanhado pelos escravos Sebastião e Fabrício.

Miguel estava são e salvo, muito excitado por causa da corrida, e enrolado numa toalha, permanecia de pé, ao lado da cadeira de balanço onde o Cel. José Pacheco, sentado dava boas gargalhadas pelo andar da prosa...

- Seu menino é muito sabido, meu compadre. Mesmo com essa idade soube manter a calma para não se acidentar.

- Eu lhe agradeço pelos presentes e peço desculpas pelo transtorno que meu filho lhe causou. Quando passar a semana santa ele receberá o castigo que merece.

- Ora meu compadre, quem de nós não já fez peraltices? E nada aconteceu de mais grave... Vamos entrando para tomar um gole de café. Se não fosse a Semana Santa, o compadre iria experimentar o licor de mangaba que eu trouxe do sítio de Itamaracá.

- Meu compadre o senhor vai me desculpar, mas eu levantei da mesa para vir buscar esse rapaz. Ainda estou com a comida aqui, no meio da goela. (e sentando numa cadeira de vime, perguntou) Como vão os negócios? E a comadre, e Miltinho? Ele já deve estar homem feito...

- Estamos todos como deus permite.

A mulher ficou no sítio de Itamaracá e só volta na barca de Goiana no sábado para assistir a aleluia aqui na igreja de Nossa Senhora da Paz. Diz que o padre vai celebrar a missa no largo do lado de fora da igreja e Miltinho, coitado, ainda não morreu de preguiça porque a bondade de deus é infinita. Agora mesmo, quando todo mundo já está de pé, ele continua estirado na rede, roncando como um porco gordo.

Não sei o que vai ser desse rapaz quando eu e a mãe dele tivermos morrido.

É inzoneiro, um estafermo de marca maior, meu compadre, infelizmente, eu não posso negar...

Os homens ainda conversaram por algum tempo.

Depois no caminho de volta, apesar dos guarda-chuvas os quatro ficaram completamente molhados, porque a carroça não tinha cobertura e Ferramenta estava cansado da carreira que dera, por isso levou mais tempo que levaria se estivesse andando normalmente.

A amizade do Coronel com o Comendador surgiu pela feliz coincidência de que as esposas destes tinham sido colegas no colégio das freiras. Internadas desde muito pequenas praticamente cresceram juntas e, depois de casadas, mantinham o mesmo coleguismo e cumplicidade da época do internato. Eram como irmãs.

Quando Maria Judith ficou grávida, comunicou ao marido que gostaria que a sua amiga, Filomena fosse a madrinha.

Filomena Sampaio de Alencar, sertaneja, filha de duas das mais tradicionais famílias do Sertão Pernambucano, foi mandada para o colégio de freiras em Olinda, e viveu no internato até formar-se professora primária, (privilégio de poucas, conforme dizia sua mãe) juntamente com Maria Judith e Leontina Pacheco.

Durante as solenidades da formatura, conheceu o então Major da Guarda Nacional, José Pacheco, irmão de Leontina.

Foi amor à primeira vista e, nessa ocasião, logo depois da missa de bênção dos anéis, o Major pediu a mão da moça em casamento ao seu pai, o Coronel Alencar, que admirado com a coragem do rapaz, permitiu que o casamento se realizasse, desde que fosse do agrado da filha e que a cerimônia fosse realizada na capela da fazenda da família no município de Exu.

Leontina, Maria Judith e Filomena eram companheiras inseparáveis, principalmente nas diabruras que faziam. A freira, responsável pela disciplina, Sóror Ventura, dizia que elas eram “as patas do capiroto”, e sempre que as punha de castigo, mandava que rezassem o terço para ver se “viravam gente”.

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As três da tarde, o padre Salustiano deu início à cerimônia do lava pés. A igreja estava lotada.

Doze homens ilustres, entre eles o médico Dr. Ataliba de Alencar e alguns irmãos da ordem de São Gonçalo iriam representar os apóstolos. Rodolfo fez questão de ceder o seu lugar para o Comendador Antônio e sentou-se no mesmo banco que a família Filgueiras, ao lado esquerdo de dona Vicentina.

Maria do Rosário estava sentada ao lado direito da avó. E, quando num momento em que a velha senhora ajoelhou, Rodolfo, passou discretamente, um bilhete para a jovem, musa dos seus sonhos.

Trêmula de medo que alguém pudesse ter visto, Maria do Rosário colocou o bilhete dentro do livrinho de orações e o guardou na pequena bolsa de seda.

A cerimônia transcorreu longa, monótona e insossa e se concluiu com a bênção do óleo que seria usado nos atos de unção durante o ano.

Miguel não tinha ido para a igreja nem quis jantar.

Estava semiadormecido, largado num dos cadeirões da sala de visitas, ardendo em febre e com o rosto e olhos vermelhos.

- Inhôzin tá indifruçado modi a chuva qui levô de menhãzinha... (Disse Josefa entrando na sala onde a família estava reunida)

- Faça um chá com hortelã da folha graúda e capim santo para ele. (Disse dona Vicentina, sem levantar os olhos do prato)

Após o jantar frugal, todos se recolheram e Maria do Rosário pôde enfim ler o bilhete.

“Minha cara senhora, rogo-lhe autorização para pedir ao seu honrado pai, autorização para fazer-lhe a corte. Rodolfo, seu respeitoso e loucamente apaixonado, criado”

Sim. Isso era tudo o que ela mais queria. Aquele homem que lhe impressionara e que despertara algo inusitado em seu ser, desde a primeira vez que o vira, se declarava apaixonado e louco de amor por ela. Era a realização do sonho de amor que tivera na noite anterior e que a fizera acordar com vontade de cantar, de colher flores no jardim e de abraçar a todos, mas que não pudera fazer.

Seria um desrespeito, um pecado tanta alegria durante a semana santa, onde se relembrava o sacrifício de nosso senhor Jesus cristo que tanto sofreu para nos salvar.

Não.

Ela não tinha esse direito de estar feliz quando nosso senhor estava novamente padecendo os horrores da paixão para nos redimir de todos os nossos pecados.

Ele que foi o sacrifício perfeito, que se imolou por todos nós, também devia ser o responsável por toda aquela alegria, por aquela bênção de ter seu amor correspondido.

Talvez o próprio Jesus tivesse colocado o Doutor Rodolfo em seu caminho para que juntos, formando uma nova família, pudessem glorificar ainda mais o seu santo nome.

Enquanto pensava assim, Maria do Rosário ficou estática, pálida e com enorme vontade de chorar.

Naquele instante lembrara que a sua mãe já tinha traçado o seu destino.

Ela deveria casar-se com Milton Pacheco, filho dos seus padrinhos e a quem esteve, desde sempre, prometida.

Mas ela não gostava de Miltinho.

Ele era gordo, mal educado, com aspecto sujo, não gostava de estudar e era extremamente rude com os escravos domésticos, mesmo com aqueles que o viram nascer.

Ela iria falar com o seu pai.

Ele era mais compreensivo do que a mãe.

Ela sabia que não seria fácil viver aquele sonho de amor, mas se fosse preciso, fugiria para casar-se com Rodolfo.

GLOSSÁRIO

Barca de Goiana = Até os primeiros anos do século XX, o transporte de passageiros e cargas do litoral Norte para o Recife, era feito por barcaças à vela, por causa da precariedade da estrada.

Bredo = planta herbácea tradicionalmente consumida em Pernambuco durante a semana santa. (Amaranthus viridis)

Capiroto = Satanás

Camarão Sete barbas = Xiphopenaeus kroyeri

Capim santo = Cymbopogon citratus

Cocos = coco da praia (Cocus nucífera)

Curimã lambaio = O mesmo que tainha, Mugil cephalus

Estafermo = pessoa parada, apalermada

Goela = garganta

Hortelã da folha graúda = Plectranthus amboinicus

Indifruçado = gripado. Difruço = Gripe

Inzoneiro = sonso, manhoso, enredador.

Jejum = termo popular para designar os alimentos que serão consumidos na sexta feira da paixão. Deriva da expressão – quebra jejum

Jerimum = Cucurbita moschata,

Mangaba = Hancornia speciosa

Marisco = Anomalocardia brasiliana

Rio Cedros = Atual Braço morto do Capibaribe

Rua Oitenta e Nove = Atual Rua Imperial

Continua em SEXTA FEIRA DA PAIXÃO