O ANIVERSÁRIO DE LÚCIA

Quando Lúcia, dez anos completados em agosto, entrou no Jardim Zoológico de Brasília, correu, virou à esquerda na primeira alameda, seguiu o rugido dos leões e perdeu-se dos familiares.

Melhor agora, a excursão seria dela e também da sua saia xadrez de zebra, da camisa branca igual ao cisne, dos brincos de bolinha dourada para os beija-flores.

O resto da família: o pai, a mãe, os três irmãos eram orelhas sem adornos.

A garota aguardara ansiosa este domingo no zoológico. Ali vestiria o casaco do leopardo. Imaginou a Savana Africana. O rinoceronte correria atrás do próprio chifre. Os avestruzes engoliriam garrafas de Coca-Cola.

Tantos comportamentos bizarros existiam dentro das jaulas, bem desconfiava, embora o mais sensato no meio da estranheza fosse esquecer a vergonha de aniversariar no vazio. Completar dez anos de idade para ninguém e mosquitos. Sem qualquer festa, bolo e amigos. Sem os dez anos que precisam de doces para se consumir.

Pelo menos no zoológico ela se sentiria bem. Eles não tinham obrigação de comparecer em aniversário de gente.

Ela encontrou a área onde pulavam os macacos. Alguns surgiram de pequenas ilhas no meio do lago. Lúcia viu e também quis se pendurar por um rabo. Balançar ora assim, ora assado. Igual ao símio meio amarelado. O maior, da Floresta Amazônica.

A placa informava o latim do primata e listava a dieta. Comia bananas. O macaco tinha cara de cachorro e o rabo grosso espiralado. Os caçadores poderiam usá-lo no tiro ao alvo. A mosca do alvo seria o fim do rabo. Ficou olhando. O símio se agarrou nos galhos de uma árvore. Subiu no tronco, correu para o galho mais alto. Brincava. Não esperava visitas. Macaco decidido a não se incomodar.

Afinal, dúvidas não podem existir dentro de bananas nanicas. Macaco não tem idade para se preocupar. Não precisa de aniversário. Quando nasceu ganhou o rabo.

O fato é que Lúcia completara dez anos e nem a família, os tios, os primos puxaram a data. A mãe não encomendou os brigadeiros. Faltou dinheiro.

O pai deu-lhe uma bola amarela semelhante a tetas de vaca. Brinquedo de praia, ele explicou. E a aniversariante, no limite, quase beirando as onze horas da noite, pensou em festa-surpresa. Os parentes estariam escondidos atrás das portas. Não encontrou ninguém. Nem a tia-madrinha. Ela deveria ser presa, em jaula de “monstra”, para ser cuspida pelos turistas.

No dia, examinou muitas vezes a cozinha, onde o bolo estaria coberto de chocolate sobre a bandeja prateada. Não viu a calda de açúcar fácil derreter no forno. Abriu o forno. Não compraram os suspiros. Não haveria festa.

Engoliu o descaso. Entrou no quarto para dormir. Os olhos acordaram inchados pelo choro. O rosto ficara branco e poroso. Foi tomar café e viu o sorriso do elefante na caixa de Sucrilhos. Paquidermes têm boa memória.

Pensou no zoológico. Animais não esquecem. Pediu, pediu para os irmãos pedirem e convenceu o pai a passearem no lugar.

A bicharada brincava. Apareceu uma girafa. Ela volteou o pescoço várias vezes. O torcicolo estava no alto e ela nem se importava. Lúcia admirou a imponência periscópica do animal. A girafa nem desviou o olhar para a família humana que surgia. Os pais brincavam com a filha:

– Aquela girafa parece a Suzana!

A Suzana poderia ter dez anos de idade. Certamente, anos comemorados em casa com bolo e convidados.

– Olha outra Suzana escondida ali atrás!

A verdadeira Suzana envergonhou-se e bateu no braço do pai.

Lúcia quis entrar na brincadeira das comparações pueris. Menina comprida vira girafa. Qualquer mulher de olhos grandes já nasceu irmã da coruja.

A família continuou:

– Você tem a mão de orangotango, papai.

Lúcia riu e percebeu que os corpos humanos sustentavam peças de quebra-cabeça, encaixes de animais. Narizes escondem elefantes e tamanduás.

Aproximou-se da família. Antes deveria se apresentar: “Boa tarde, eu tenho dez anos”. Seria importantíssimo, dali para a frente, indicar a idade. Se chegassem a inquiri-la “seu nome?”, “endereço?”, antes anunciaria a idade não comemorada no dia 23 de agosto. Dez anos, mesmo sem a certidão de nascimento da festa.

A vida concentrava-se nas festas de aniversário. Faltava uma peça agora, embora para alguns homens sobrassem narizes.

A família amiga das girafas saiu de perto. A menina prosseguiu a visita. Entrou em outra alameda, subiu em um muro de pedregulhos, vislumbrou o lago de água barrenta do hipopótamo fêmea com o filhote.

O hipopótamo e a cria caminhavam esmagando o mundo. Bocejaram dentes enormes, mergulharam na água e boiaram com facilidade. A mãe e filho conversariam muito na língua dos hipopótamos. Imaginou a gorda a pedir desculpas ao rebento pelo excesso de gordura. Explicar que, apesar da banha, a pele do menino não arregaçaria nunca, por mais hipopótamo que ele fosse. “É herança de família, meu filho, mas, note a façanha, você flutuará na água, leve como um balão”.

Lúcia fantasiou a sensação do filhote dentro da piscina. Confirmava as razões da mãe hipopótamo. Ela abriu os braços. Quis mergulhar. Boiar. Um segurança gritou: “Desça daí!”. Apitou. A aniversariante assustou-se. Saiu correndo. Entrou no viveiro das cobras.

Quantas cobras enroladas! Espaguetes atrás da vitrine. Devem dormir e sonhar venenos.

O veneno participa do aniversário da serpente. É ingrediente do bolo. Ela não conhece outro suco para ajeitar o gosto da massa.

Lúcia quis o bolo da anfitriã. Cobras não comem bolos de maracujá e não dão beijinhos.

Antes não imaginava a festa venenosa. Esperava a comemoração tradicional, com começo, meio, velinha e fim. E na saída, as pessoas levariam lembrancinhas. Poderiam ser apitinhos ou línguas de sogra.

Alguém apontou a cascavel da outra sala. A única víbora em atividade. A cobra mirou o público e soltou a língua bifurcada. A língua de sogra, o brinde do aniversário estava ali.

Não era possível esquecer o aniversário perdido. A década completada no espaço. Mais tarde espetaria na faca o presente do pai. A bola de borracha.

– Cada tentáculo colorido marca um ponto diferente. É um jogo – disse o pai.

Chegou à quadra das aves. Pensou na mãe. A mãe atropelava os filhos como o pouso dos albatrozes. Saiam da frente e cresçam!

A aniversariante seguiu vendo javalis, ursos e bisões. A anta morava sozinha, na margem oposta do lago. “Isolem-me! Eu sou a anta! Tanto faz como tanto fez. Pareço um porco. Não quero aniversário. Os porcos quiseram e viraram churrasco!”

“Nem churrasco de aniversário” – pensou Lúcia.

Interessante foi o viveiro das tartarugas gigantes. Viveiro festivo, embora imóvel sob o sol. A imobilidade não ajudava a solenidade. A quantidade dos visitantes, porém, criava o ar celebrante.

Contou quinze tartarugas em posição normal e uma com a carapaça virada. Subira em cima de outra e desequilibrou-se. Terminou de pernas para o céu. Vomitava. Possivelmente a aniversariante.

Lúcia quis chamar os vigias do zoo. Naquela posição, a tartaruga morre sufocada. Não os encontrou.

Voltou ao viveiro. A agonia do quelônio comovia. O vômito vertia da sua boca. Nunca vira agonia maior, e o mundo humano não ajudava, não impedia o mal-estar. A cabeça do réptil girava, buscava um esforço. Balançar-se tal qual um barco sem lastro, até emborcar.

Tartarugas vivem muitos anos. Perdem a idade. Duzentos aniversários, nem sabem. Lúcia saltou o muro, correu até o anfíbio e endireitou o casco.

- Nenhum problema, amiga. Pode voltar pra festa.

Procurou entender a justificativa da mãe de que faltara dinheiro. Não tinha dinheiro? Desculpa mastigada por pais com dentes ruins. Leões sem dente.

Chegou ao espaço do leão. Seu terreno ficava longe do público, depois de um lago. Ali o leão resfolegava sozinho, deitado. Lúcia quis imitar o som daquela respiração. Entrar no corpo do corpo do felino, rugir. O leão rugiu.

Grande poder de persuasão. Os outros animais respeitavam o rei dos animais. A festa acontecia diariamente. Quem ousaria reclamar a falta dos docinhos?

O aniversário martelava. A mãe não confirmou a lista de participantes. Ela a preparara com dois meses de antecedência. Poderia ter enviado os convites às amigas da escola. Elas levariam os últimos discos. Tocariam músicas na vitrola. Falariam dos colegas de escola. Alguns poderiam comparecer.

Os meninos, avestruzes em seus pescoços finos. Chegou ao pasto das avestruzes. Dois deles correram balançando as asas. Brincavam o pega-pega. Meninos em todos os pescoços.

Riu e pensou em se comunicar telepaticamente com os animais, com os alunos da escola, os primos. Avisar que, se houvesse outra natureza, outra possibilidade de festa, Lúcia, da 4asérie B, liberaria a degustação dos doces antes do bolo. Não seria mais falta de educação. De verdade. O que valem os brigadeiros? Os brigadeiros soltos... ou a fuga. Fugir de casa? Ir plantar couves para os babuínos.

A ex-aniversariante, por fim, encontrou o tanque das ariranhas. Animal diferente, meio foca, meio peixe, meio mundo submarino da televisão. Faltava o ralo para a entrada dos golfinhos.

Lúcia subiu a grade. Embaixo, três ariranhas nadavam na piscina azul para sempre. Nadavam na doçura da água. Quis pular. Entrar na festa. O início seria a brincadeira de mergulhar muito, prender a respiração e pular de alegria puxando o ar. Depois abrir a boca para os peixinhos. Comer as pipocas jogadas pelas crianças.

Quem notaria a garota-foca, diante das bolhas? A garota sem aniversário, sem bolo – nem Pepsi-Cola trouxeram.

Lúcia foi perdendo o equilíbrio.

– Sua maluca, o papai tá te procurando. Ele tá louco da vida ­– puxou-lhe um dos irmãos que a procuravam.

Lúcia lamentou não ter entrado no salão das ariranhas. Até chegar em casa, somente ouviu as reclamações do pai:

– Desmiolada! Parece criança.

Ela não era criança e não quis repetir a idade.

No dia seguinte, a fugitiva ainda não esquecera a desfeita. O dia 23 de agosto de 1977, o seu aniversário. E até o passeio martelava. Sobrara apenas a idéia do macaco-prego. Iria furar outro mundo. Nem o zoológico prestava.

De súbito, o noticiário da tevê destacou o acidente ocorrido na véspera: no Jardim Zoológico de Brasília, um menino caíra no tanque das ariranhas. Um sargento da Polícia Militar à paisana, que passeava com a família, salvara a criança. As ariranhas, porém, feriram o homem que morreu a caminho do hospital.

Lúcia arregalou o rosto. Outro aniversariante pulara em seu lugar. Ontem, no próximo pulo, na mesma hora, e quase fora assassinado. Outro aniversariante, com dez anos completados em agosto.

Ela pensou na atitude do sargento. Não tinha a obrigação, salvou a criança e também a salvaria. “Parabéns, Lúcia. Teu presente é o seu próximo aniversário. Não se aborreça mais pela falta de convidados”.

Certas pessoas se importam e arriscam a vida - pensou.

A festa do aniversário de Lúcia foi um resgate do poço das ariranhas.

(Lembranças para o cronista Lourenço Diaféria e para o sargento Sílvio Delmar Hollenbach que realmente salvou o garoto)

Do livro:"As crianças do General Médici"

Paulo Fontenelle de Araujo

E-mail: phcfontenelle@gmail.com