QUARTA FEIRA DE TREVAS
A semana santa daquele ano não poderia, nem deveria ser diferente das demais desde que o comendador assumira a direção da família de tradição católica pluricentenária.
Com a morte do velho pai, o Comendador Aurélio Filgueiras, poucas coisas se modificaram. Dona Vicentina, agora viúva, continuava fazendo o seu crochê sentada na cadeira de balanço naquele lado sombreado da varanda, só saindo de lá quando Josefa, a escrava tão velha quanto a sua senhora, vinha lhe chamar para as refeições.
- O di cumê tá na mesa sinhá!
- E o meu filho já chegou?
- Inhora não, mai Sá Maria dixe qui é prá sinhá í pru modi di chegá cedo na igreja, modi pegá lugá mai mio.
- É, eu tinha esquecido. Meu filho disse que vai alugar um coche grande para irmos todos juntos.
- Ieu vô mai vosmicê?
- Não, vosmecês vão ficar rezando o rosário em casa. Comecem quando sino tocar a entrada e só parem quando o sino tocar no fim do ofício.
- Sinhá vai pro Caimo ô pá Ajuda?
- Não vou para nenhuma das duas. Meu filho quer a família toda em São Gonçalo. Ele fez os votos da irmandade no Domingo de Ramos e quer ver a família reunida nessa primeira procissão.
- Deusi guarde a santa fé de inhô Antôin.
- Amém. Ajude aqui com essa cesta. Vamos para dentro.
As duas mulheres entraram na casa e ao passarem em frente ao oratório, dona Vicentina parou, fez o sinal da cruz e perguntou:
- Por que ainda não cobriram os santos?
- Sá Maria dixi qui é pá isperá a boquinha da nôte. Us pano roxo já tá tudo ingomado e drobado im riba da mesa do oratoro só isperano a ora pá modi cubri us santo...
A família já estava sentada à mesa esperando a dona Vicentina para começar a refeição. A nora, sinhá Maria Judith, moça educada no colégio interno das freiras Doroteias, perfeita dona de casa, responsável por tudo e por todos da porta para dentro. Maria do Rosário, menina moça com quinze anos, que sonha com o dia em que o seu príncipe encantado virá pedir a sua mão em casamento, antes que ela complete os dezesseis anos no próximo mês de agosto e Miguel, o neto caçula, com nove anos, aluno da escola da dona Cotinha, exímia no manejo da palmatória e conhecida pelos castigos físicos que a fizeram temida por todos os que têm ou tiveram a desdita de serem seus alunos, ambos, filhos do Comendador Antonio, filho da dona Vicentina, com a dona Maria Judith.
Compenetrados e em silêncio comeram a tapioca com coco e beberam as canecas de leite com café.
As refeições, a partir daquela hora deveriam ser frugais porque assim exigia a observância aos ensinamentos da igreja.
Além da dona Vicentina que ainda conservava o luto pelo falecimento do marido, os demais também estavam vestidos com roupas escuras em sinal de luto pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Miguel não conseguia entender como é que Jesus nascia menino bem pequeno no natal – ele tinha visto no presépio do convento dos capuchinhos, na Rua da Cadeia Velha - e morria já homem feito na semana santa do ano seguinte, e não tinham se passado nem seis meses...
O pai já lhe explicara que se tratava apenas da comemoração, que era como a festa de aniversário dele, Miguel, que todo ano, no dia do nascimento, todo mundo vinha lhe abraçar.
Mas o que ele não entendia é por que festejar a morte...
E, se morria, como é que ficava vivo outra vez?
E por que seu avô Aurélio não ficava vivo também depois que morreu? Sua avó mandava rezar missa para ele todo mês, era que nem uma festa de aniversário, mesmo assim ele não ficava vivo de novo.
Já fazia mais de um ano que o avô tinha morrido...
O pensamento de Miguel foi interrompido quando Sebastião, o velho escravo entrou na sala com o chapéu na mão e informou à meia voz.
- Sinhá, o coche chegô mai nhô Antoin num vêi não... El’mandô dizê qui é pá sinhá í c’ôs pessoá qui ele tá isperano na poita laterá di São Gonçalo, c’ôs lugá reseivado.
- Mande o homem esperar. A senhora já terminou dona Vicentina? Miguel por que você não comeu tudo? Rosário bote a tapioca dele no guardanapo para ele terminar de comer na igreja. Josefa, pegue o terço e o véu de dona Vicentina.
Quando estavam saindo deu as últimas ordens.
- Sebastião, feche a porta da frente com a tranca e feche as cortinas de todas as janelas. Quando escurecer, cubra todos os santos e acenda só uma candeia no oratório. Nada de conversas. Quero todo mundo reunido na sala de jantar rezando até nós voltarmos.
Segure essa escadinha para dona Vicentina não torcer o pé.
Miguel espere a sua avó subir primeiro.
-----------------------------------------------
Rodolfo de Alencar, primeiro filho do Dr. Ataliba de Alencar, médico consagrado e amplamente conhecido naquele Recife da metade do século XIX, contrariando a vontade do pai, e fugindo à tradição familiar, recusou formar-se médico, como era o seu pai e foram seu avô e bisavô paternos.
Preferiu tornar-se advogado.
Queria distribuir a justiça a todos os necessitados que viviam à margem da sociedade.
Queria ser a voz dos injustiçados, dos perseguidos e alijados da fortuna e antes mesmo da formatura, já militava no fórum da cidade.
Em parte ajudado pelos amigos influentes do pai, conseguiu montar um escritório de advocacia, num casarão, esquina do Caminho do Hospício de Jerusalém com o Caminho Novo, em sociedade com Nicolau Antunes Ferreira seu colega da faculdade, filho do senhor Manuel Ferreira, comerciante português, que tinha armazém de secos e molhados na Rua das Florentinas, bem perto da garapeira na Praça do Campo das Princesas.
Rodolfo e Nicolau faziam parte da Irmandade de São Gonçalo, instalada na igreja do santo, naquela rua estreitinha que leva o nome dele, logo depois do mercado da Boa Vista, ao lado do Pátio de Santa Cruz.
Por ser tocheiro, Rodolfo era o primeiro da fila dos irmãos que abrem o cortejo e quando viu a chagada dos familiares do Comendador Antônio Filgueiras, seguindo as normas da boa educação e do cavalheirismo, rapidamente, entregou a tocha ao seu amigo, Nicolau, e foi ajudá-los a descer do coche, principalmente a dona Vicentina.
Quando seus olhos encontraram os olhos escuros de Maria do Rosário, que no frescor da idade mais parecia um anjo do que uma linda mulher, ele ficou paralisado.
Aquele breve momento em que a mão trêmula da moça buscou apoio para a descida do coche, foi o bastante para que a paixão invadisse todo o corpo do jovem vestido com a opa da irmandade.
Praticamente sem voz, ofereceu o braço à dona Vicentina e guiou-os para a porta da igreja, onde o comendador estava segurando o báculo com a cruz de prata da irmandade.
Apesar do breve momento, dona Maria, a vigilante mãe da donzela, viu e entendeu o rubor das faces e a troca significativa do olhar dos jovens.
O pároco celebrou a missa e cumprindo os ritos das trevas, retirou todos os panos e os enfeites do altar principal.
As velas foram sendo apagadas até que toda a igreja ficou fracamente iluminada apenas pela candeia colocada em frente ao altar mor.
Os sinos tocaram anunciando o fim da cerimônia da quarta feira de trevas e para chamar as pessoas para o início da procissão do encontro, com as imagens de Jesus com a cruz e de Nossa Senhora das Dores.
Se lhe fosse permitido, Rodolfo não mais participaria da procissão. Ficaria todo o tempo embevecido na contemplação daquela criatura divina, mas as matracas tocaram anunciando o início do cortejo e ele teve que reassumir seu posto.
Lentamente, a procissão seguiu em direção ao Hospital São Pedro de Alcântara, deu o giro pelas beiradas do Cais do Capibaribe e entrou na Rua Nova da Boa Vista. No pátio de Santa Cruz, houve o encontro solene dos dois andores, acompanhados com muito choro e orações dos fiéis devotos. Depois, entraram na Rua de São Gonçalo e voltaram para a igreja, com os andores sendo levados com passos lentos, sem banda de música, apenas com o som das matracas, símbolos sonoros na preparação da parte mais importante da semana santa.
Mas nada disso mereceu a atenção de Rodolfo que estava com o pensamento fixo em Maria do Rosário, sua divina musa.
Será que aquele tremor vacilante seria a confirmação de que ela sentira o mesmo que ele?
Finda a cerimônia, a família do comendador se retirou do templo e Rodolfo prontificou-se a ajudar à senhora dona Vicentina, sem tirar os olhos de Maria do Rosário que se manteve de cabeça baixa até entrar no coche.
Rapidamente e semi-escondido pelo véu, ela deu um sorriso para Rodolfo e quando o coche de pôs em movimento, manteve os olhos fixos nos do rapaz que entendeu o gesto como a aceitação de seu amor.
Exultando de alegria foi reassumir seu posto junto aos irmãos na primeira hora da vigília de trevas, mas não pôde se concentrar nas orações, seu pensamento estava com Maria do Rosário Filgueiras Crespo, filha do comendador Antonio Filgueiras, seu irmão na ordem e de dona Maria Judith Crespo.
No dia seguinte, com certeza ele teria a confirmação desse amor...
GLOSSÁRIO:
Cais do Capibaribe = Atualmente Cais José Mariano em homenagem a José Mariano Carneiro da Cunha, advogado, abolicionista, deputado constituinte em 1890 e prefeito do Recife.
Caminho do Hospício de Jerusalém = atual Rua do Hospício.
Caminho Novo = atual Av. Conde da Boa Vista
Garapeira = local de repasto para animais de tração, bois, burros e, principalmente, cavalos onde eram servidos capim e água com melaço, cuja mistura era chamada de garapa, daí o nome dado ao local.
Praça do Campo das Princesas = Praça da República
Rua da Cadeia Velha = Atual Rua do Imperador D. Pedro II
Rua Nova da Boa Vista = atual Rua Velha
Continua em QUINTA FEIRA