Momentos difíceis
 
 
Este conto é dedicado àqueles que acreditam que o
provérbio está errado, não é a ocasião que faz o ladrão. A forma exata deveria se: “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito”, e... sempre merecerá mais uma chance.
 
A ocasião não faz apenas o ladrão, mas também
grandes homens.


Georg Lichtenber
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Parte I
 

     Da dobra da esquina ele vigiava a mulher que saía de casa e tomava o assento do passageiro no carro que estacionara ali, enquanto conversava com a vizinha:

     — Que bom que é poder ajudar! Vamos cozinhar lá no sítio do seu Antônio Felisberto. Só volto à noite! O doce de abóbora é por minha conta! Até mais.

     — Hum, que delícia! Não vou perder a festa da Antinha! Como gosto de tudo que preparam lá. Até mais!

     O automóvel partiu. A vizinha deixou o lixo no cesto e voltou para seu mundo. A solidão caiu em todo o bairro. Ninguém. Somente uns cachorros vadios, uma música ao longe, uma estação de rádio em campanha contra a dengue, um choro de bebê, uma tevê com o jornal da tarde, o ruído da fábrica de blocos ao longe.

     O rapaz esperou uns minutos. Olhou para a direita, para a esquerda, para trás... Tornou a observar em todas as direções. Atravessou a rua, passeando, subiu a calçada e aproximou-se do interfone como se dialogasse com o interior da moradia.

     Rápido e inaudível, tirou um pequeno estojo do bolso traseiro, escolheu uma peça e deslocou o miolo da fechadura, segurando-o para que, na queda, não perturbasse o silêncio. Novamente seus olhos correram a rua. Entreabriu o portão, passou ágil pela fresta, encostou um toco de madeira para disfarçar a abertura e mergulhou nas sombras da varanda, temendo esbarrar nos vasos floridos ou nas cadeiras preguiçosas.

     Outra porta de ferro? Fôlego curto, coração aos baques. Segundo miolo ao chão. Escorregou para o corredor. As rótulas estalaram, encostou-se às paredes; se fizesse barulho a vizinha, detrás do muro, poderia descobri-lo. Seguiu cauteloso até a porta da cozinha. Trancada. O terceiro miolo roda no piso. Sorrateiramente o rapaz vai abrindo passagem... trimmmm...trimmmm... trimmmm...trimmmm...

     De imediato se ouvem os gritos dos vizinhos:

     — É o alarme de D. Cida. Corram lá.

     — Disparou?

     A sirene continuava. trimmmm... trimmmm. O atrevido ganha patas de lebre... corre, sobe, desce, pula, dispara alucinado... Nada leva... Ficou somente com o susto.

     Os vizinhos chamam o filho da proprietária; cautelosos entram na casa e vasculham cômodo por cômodo. Temiam que o ladrão estivesse de tocaia lá dentro. D. Cida, amolada, voltou para ver o que havia acontecido. A polícia veio. Não havia o que fazer. Nada faltava na casa — exceto os três miolos de fechadura! Sem testemunhas, muitas especulações:

     — Foi o moleque da esquina.

     — O neto da dona Maricota usa drogas e vive roubando.

     — É mais de um para fazer tudo tão rápido assim.

     — Eta! D. Cida, salva pelo alarme. Mandou instalar na hora!

     E assim termina a história? Absolutamente! O rapazote continuava na esquina observando o vaivém e a conversação. Frustrado, lembrava-se de como na semana anterior entrara tão fácil no bar da outra esquina, apesar de que tenha saído de lá sem um real. Não havia dinheiro. Para não brigar com o parceiro que vigiara os arredores, do alto do muro que pularam, precisou comprar balas e chicletes para ele, depois que o bar reabriu. Quando saiu de lá às escondidas, nem se lembrou de pegar uns doces, chateado que ficara. Será que D. Cida mandou instalar o alarme depois disto? E, agora, a vizinhança toda iria tomar providências.

     Tamanha adrenalina por nada!

     A solução era trabalhar em outro bairro...


 
Fheluany Nogueira
Enviado por Fheluany Nogueira em 21/01/2016
Reeditado em 15/03/2016
Código do texto: T5518270
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