A Quadratura do Círculo-cap. I
Ontem pude, pela primeira vez na vida, passar uma tarde realmente feliz, não nesse sentido supérfluo, como querem os supérfluos, mas de uma maneira plena, serena , tranquila.
Eu quero dizer que ri abundantemente, como riem os tolos e os tresloucados...É que não resolvi me tomar mais a sério, como então o fazia. Era o coitado , o injustiçado e os outros...ah, esses me deviam uma paga pela minha nobreza e nobres atitudes...nada, nem um tostão pela minha retidão de princípios...
-Quanto o senhor vai querer?
-Um quilo, por favor, bem pesado!
Esses peixes que vejo aí, enfileirados, também eram honestos, cumpridores do dever e... nem por isso vão escapar de minha panela. E o peixeiro é ruim e eu o sou? Mas eu sou bom? O que eu sou ?
Quisera ser cruel, mas na hora, mas na hora certa, na medida certa. Preferi minha pecha de bom homem, o homem que não se move do lugar. É fácil ser durão com as pombas e espantá-las do milho. É saber usar as palavras adequadas e uma postura firme...os exércitos nos seguirão...Rufino foi assim; um calhorda, mas que tinha firmeza de caráter:
-Você se preocupa demais com o que as pessoas vão pensar ou sentir.
Tome uma posição ou vão tomar o mundo de você, Bartolomeu !
-Mas eu não; cada ato meu vai ser julgado; não me atrevo a ir além do que me sinto seguro para assumir. O que os outros pensarão de mim ?
-Ora...
E há mulheres-como não se há de admirar?-que usam de seus encantos para conseguirem seus intentos. Qual delas nunca fez isso? Toda sua força está em como ama ou odeia; elas sabem tirar partido disso muito bem. Paloma...Nunca deixará de ser virgem. Há aquelas que o são do fundo da alma, com quantos homens se deitem, serão sempre virgens...
-Pra...você!
-Pra mim?... Obrigada...não precisava...
-Paloma, meu mundo pra você !
Um mundo se descortinou...não importam as vulgaridades, a pobreza de caráter, as dissimulações; a vaidade feminina torna tudo em derredor mais bonito...
-Vi você, você com outro...conversando com outro!
-Não posso conversar, Bartolomeu ?
-Pode, mas precisava dar-lhe a mão?
-Eu faço o que quero !
E realmente fez o que quis. Com vários. Mas foi honesta, no seu modo de sentir. Eu é que com meus frágeis sentimentos de insegurança, queria o quê? Uma paga pelos meus tênues carinhos e afagos? Rufino é vulgar, mas como brilha no que faz e como me derrubou como folha seca dependurada em árvore...
-Você traiu minha confiança; ela era minha...
-Sua por quê ? Ela não tem dono...
Sim , não era para mim; os dois vão agora excursionar pelo mundo; são pessoas de ação, decididas, não perdem tempo e logo chegam ao cerne da questão.
-Eu fui honesta em meus sentimentos; enquanto o amei, estreitei-me em seus braços; agora tudo mudou...o mundo mudou, a vida mudou...quero outras coisas para mim...
-Sim, você pelo menos é sincera no que diz. Sinceramente observou a conta no banco dele ...mais recheada a carteira, não é?
-Assim você me ofende ! Que conceito tem das mulheres? Sempre inseguro com tudo e consigo mesmo. Apesar de trabalharmos também, no fundo queremos segurança. E se formos abandonadas de repente ? Uma mulher sozinha sofre muito mais com os preconceitos da sociedade.
Tinha razão; raciocinou muito bem. Quem disse que os homens são racionais? Mas não posso me esquecer do início desse relato : disse que ontem , pela primeira vez na vida, pude rir abundantemente, impunemente; senti-me livre pela primeira vez na vida. Vou contar: seguimos nossas vidas como ditam os romances, as novelas, o teatro; tudo gira em torno do amor de sua vida, daquela princesa que tornará tudo em derredor divino. E se a vida não for nada disso? E se o riso for a condição única e primordial da existência? E se a razão da existência for jogar pingue-pongue, aprender norueguês ou visitar as Ilhas Canárias ? nada impede isso.
Pois bem, saí da casa de Paloma quedo, mudo, cabisbaixo, disposto a pular da primeira ponte; o mundo me veio abaixo. Entrei em casa; parecia que um vendaval havia me levado, quando vi, jogado entre as tranqueiras, um livro de anedotas. Pus-me a ler; uma após outra me fizeram sair daquele torpor aos poucos, fazendo-me ver que de nada me valeria passar a vida como o bom moço, respeitador das respeitabilidades nem tão respeitosas assim.
Elejo agora, como razão principal da vida, o riso. Me unirei agora aos debochados, zombeteiros, despudorados...
Se eu for capaz... pois há uma distância muito grande entre o pensar e o agir.
Uma vez, entretanto, tive coragem...quando a vi pela primeira vez...tão terna , meiga:
-Você sabe onde fica a plataforma de embarque? –disse ela.
-Quer que eu a leve lá ? Quer sair comigo ? venha a minha casa...