SABEDORIA*
A festa de aniversário da tia Irene ia alta. 71 anos. Toda a família, amigos e os integrantes do Ministério da igreja estavam reunidos na casa da filha dela. Era uma chácara enorme nos arredores da cidade. Já feita para esse tipo de reunião, a área tinha uma cozinha do lado de fora e já preparada uma grande mesa para que todos pudessem se sentar para o almoço de comemoração.
De repente chegou a filha da tia Joana com seu marido e filhos. Foi aquela alegria geral em quase todos. Os mais velhos ainda olhavam com desconfiança o esposo dela. Não que ele fosse má pessoa. Pelo contrário. Era excelente! E justamente aí morava o problema. Ele fazia parte da turma dos "convencidos" e não convertido. Se batizara, frequentava a igreja e tudo, mas se ainda vivesse no mundo era melhor. De vez em quando ainda tinha suas recaídas nas drogas, continuava fumando cigarro, era superdivertido e sempre disposto a ajudar, vivido, era muito respeitado pelos mais jovens e sempre dava conselhos, se não sábios, pelo menos interessados. E mesmo com tudo que nele parecia desviar, sua fé parecia ser uma das mais sinceras. Era um mistério, até para os mais experientes do Ministério, tendo aqueles que o amavam e aqueles que o imaginavam como o joio plantado entre eles.
Confirmando sua famosa dualidade, chegou cumprimentando à todos, brincando e gracejando. Passou vinte minutos, olhou para um dos filhos de um dos pastores:-"E aí, você ainda está fazendo aquela coisa feia?". -"Qual tio?".-"Schiuuu!". Logo ele entendeu que era fumar:-"Ainda tio". -" Ah, que pena! Aonde a gente pode fazer a coisa feia junto?".-"Ah, chega aí tio! Tem um cantinho lá embaixo que não têm problema". Foi como se soasse um alarme. Todos os homens que tinham o vicio do tabagismo se levantaram e foram em massa para o mesmo lado. Levando suas latas de cerveja e uma garrafa de vinho.
Desceram todos uma pequena escada que levava a um pequeno depósito aonde se guardava ferramentas e materiais. A conversa começou pelas lembranças, principalmente das bebedeiras. O esposo da filha da tia Joana, diferente de todos, era o único que não bebia. Mas suas estórias eram as mais picantes. Mas o tempo havia passado para todos, cada um tinha agora suas responsabilidades e pontos de vista e os tempos não eram bons, então a conversa logo mudou para a situação política do país.
Como toda conversa sobre assunto tão espinhoso, as opiniões logo se tornaram acirradas. Uns defendendo a saída da presidente atual, outros dizendo que isso era um tipo de golpe, outros dizendo que tudo estava perdido e que o jeito era se segurar até as próximas eleições. Quando já se começavam alguns a defender um novo golpe militar e outros uma enorme mobilização popular que levasse à algum tipo de revolução, eis que surge no topo da escada a figura do tio Américo.
Era como uma cena bíblica! O céu nublado sobre a cabeça daquele que era o símbolo da experiência e austeridade! Apoiado sobre uma bengala estava um ex-coronel do exército que participou do golpe de 64, depois largou tudo e entrou para a guerrilha com todas as armas de um quartel, foi preso e exilado, esteve em Cuba e na União Soviética, foi deputado federal pelo PT e largou tudo quando se converteu. Virou pastor da igreja mas nunca aceitou salário, chegando a trabalhar como pedreiro. Fez-se um silêncio constrangido. todos com seus cigarros acessos na mão. Se esperando uma bronca ou uma opinião sobre o assunto que se discutia. Algo que exprimisse sua profunda sabedoria.
Depois de quase um minuto de uma espera lancinante, aonde ele olhava para todos, disse com sua voz grave:-"Quem vai me dar uma cerveja?".