Parque Rio Branco
O exército vestido com suas armaduras de andrajos laranja, com seus cavalos de plástico, munidos de pás e inchadas, todos mestiços neurastênicos, de vez em quando um fenotipicamente branco, mas bem queimado do sol, pobre, quase preto. O uniforme é da EMLURB, o campo de batalha o Parque Rio Branco, o inimigo as folhas do outono tímido do Equador.
A natureza é sempre uma cidade aberta e o exército de mercenários explorados, quase miseráveis, marcham em passo melancólico. Não cantam como os outros exércitos ao marchar, pois esqueceram-se das canções de seus avós, marcham ouvindo o cantar das árvores, uniforme e bem afinado. Vez em quando algum faz alguma troça e todos eles riem, mas logo deixam de lado o objeto de distração e vão cumprir sua missão.
As folhas vestidas da mesma cor dos inimigos, laranjas como o pôr do sol, todas aparentemente iguais, mas com cuidado notam-se singularidades em cada uma. A folha que se esconde no canal tem uma mancha verde no meio do laranjal na forma do estado do Ceará, essa outra é anã, no entanto, a mais encarnada de todas, escarlate, brilhando como um rubi, traindo o traje a rigor exigido pelo outono.
Os civis fazem cooper no parque em um universo alternativo, alheios a batalha, alheios ao exército que vasculha até o último sobrevivente que se escondem atrás de algum banco, em baixo de algum carro, dentro de algum buraco, todos vão parar em sacos pretos que logo vão se amontoando ao redor do parque e ninguém se pergunta o que aconteceu quando todas as folhas, de repente, se vão, uma a uma.
Ao final da tarde, limpo o campo de batalha, eles descansam deitados no chão comendo mangas muito verdes com sal e bebendo cachaça, fruto do solo de massapê, feita nas caldeiras de Maranguape, alternam em suas bocas a cachaça e a manga e fazem caretas. O gosto pela cachaça está em seus genes, assim como seus gênios violentos e corações grandes como nos imaginamos que Deus seja. Riem e lembram de canções antigas a muito tempo esquecidas, lembram dos aldeamentos, lembram dos campos de concentração dos refugiados da seca, lembram como perderam fortunas nos jogos de caipira, lembram de tudo isso falando que o novo meia do Fortaleza é um garoto prodígio e como o Ceará não tem chance alguma contra a nova formação defensiva arrojada, e claro irão ganhar o campeonato.
As folham unem-se partícula por partícula a leveis mais misteriosos e complexos de existência, virando energia, ficando mais perto de Deus, como toda coisa que existe se reintegra ao que não podemos ver e vão formando outras coisas; uma serra elétrica, ouro, oxigênio, um lança chamas, arsênico, napalm. Um quebra cabeça impossível de ser resolvido. Quem sabe não fizemos parte de Napoleão? Essa é a linha invisível que liga tudo e tudo parece ser realmente a mesma coisa.
Os lixeiros da EMLURB voltam no outro dia meio de ressaca e recolhem todos os sacos de folhas que deixaram no parque, colocam em seus carrinhos laranjas de plástico e partem para o Polo de Conjunto Ceará local de menos árvores e mais mato para capinar, o que torna o trabalho mais pesado. Não sobrará tempo no final do dia.