O ÚLTIMO RETORNO

O ÚLTIMO RETORNO - Por Olavo Nascimento - (29/12/2015)

- Não foi por meu desejo ou por minha interferência que você vai voltar. Agradeça aos insistentes apelos dos meus irmãos a concordância da nossa mãe. Portanto, traga os seus trastes e venha para cá. Foram estas as duras palavras de Othon para o seu pai Mauro, após alguns dias tentando mais uma vez o retorno para casa.

Corria o ano de 1965 e Othon tinha acabado de completar 23 anos naquele período conturbado da política brasileira. Fazia praticamente um ano do golpe militar de 1964 e Othon já estava bem encaminhado como funcionário da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, nomeado que foi por concurso público. Começou a trabalhar bem cedo como office-boy aos 16 anos em empresas privadas, galgando outros cargos em promoções administrativas, após passar um bom período no serviço militar. Ou seja: os piores momentos de Othon e da sua família quando as crianças ainda eram menores de idade, já haviam se passado e, agora, naquele instante, a situação estava bem melhor com a ajuda que também vinha de seus irmãos.

- Eu sei muito bem - retrucou Mauro às palavras do filho - que por sua exclusiva vontade isso não seria possível. Você nunca me perdoou e também deixou de me procurar esses anos todos de afastamento. Mas não precisa me humilhar com suas palavras. Eu nunca vou me esquecer que você é o meu primeiro filho, como você também não deveria se esquecer de que eu sou o seu pai.

- E outra coisa: daqui pra frente não quero ouvir reclamações da minha mãe contra você. E que fique bem claro: mesmo que ela esteja errada eu vou ficar sempre do lado dela. Vou defendê-la em qualquer situação. Impôs com convicção o filho primogênito.

- Por que isso agora meu filho? Eu quero chegar em paz e consertar os meus erros. Vamos esquecer o que passou. Rebateu Mauro com certa humildade.

- Que seja em paz mesmo meu pai, porque o nosso pequeno casebre vive assim há bastante tempo. Somos uma família que conseguiu levar a vida com todas as dificuldades causadas pela sua ausência. E essa paz não será quebrada de jeito nenhum, nem mesmo por você. Continuou Othon com satisfação, por colocar para fora tudo que estava engasgado em sua garganta há muito tempo.

- Entendo e aceito a sua revolta por tantos anos de abandono, mas agora são outros tempos. Estou mais calejado pelas "porradas" que levei na vida e não quero voltar para aquele caminho. Contemporizou o velho bastante pesaroso por tudo que acabara de ouvir.

- Nunca vou me esquecer dos seus sumiços inesperados sem dizer para onde. Da luta da minha mãe na beira de um tanque ou com um ferro de engomar na mão, para trazer comida pra casa lavando e passando roupas para fora. Nunca vou me esquecer meu pai, de ter largado os meus estudos bem menino ainda, para ajudar minha mãe como caixeiro de quitanda. Estudos aqueles que tanto gostava e que ainda pretendo retomar. Voltou a desabafar o filho cheio de razões.

- Eu sempre tive orgulho da sua dedicação para os estudos, com boas notas e elogios de professores desde a época do primário. Não pare não meu filho, nunca será tarde para a gente se instruir e subir degraus na vida. Aproveite o seu potencial e não desista dos seus objetivos. E se precisar, agora eu vou estar mais perto de vocês. Aconselhou e prometeu o velho Mauro tentando se redimir de suas falhas.

- Então estamos conversados não é mesmo? Aqui você vai ser respeitado como nosso pai, mas por enquanto, por ser o filho mais velho, eu vou continuar sendo o chefe da família como tem sido até agora. Procure não se intrometer em nossos assuntos ou ditar ordens pra gente que já se acostumou em não ouví-lo. Vamos evitar outra conversa como esta e deixar as coisas irem se acalmando aos poucos e sendo aceitas de coração pela minha mãe. Conquistá-la de novo deve ser uma das suas metas, mas quanto a isso você sabe muito bem como fazer. Aliás, não será a primeira nem a segunda vez que você terá essa empreitada, não é mesmo? Ironizou Othon com sorriso nos lábios.

E assim, Mauro, depois de mais oito anos longe da família, adentrou àquela casa que era estranha para ele. O endereço era outro de quando ele sumiu pela última vez e tudo parecia novidade à sua volta. A casa, o lugar, os filhos mais crescidos e, por incrível que possa parecer, até Jadyr, a mãe daquela família, era outra pessoa completamente diferente. Jadyr sempre teve uma paixão doentia pelo marido e, por conta disso, relevava muitas das suas puladas de cerca. Preocupada com o sustento das crianças e temerosa de perder a companhia de Mauro, suportava tudo calada numa submissão total que intimamente lhe fazia muito mal. Ela tinha medo de suas ofensas e agressões e evitava ao máximo bater de frente com ele.

A irresponsabilidade de Mauro era uma de suas características nocivas e marcantes. Não foi uma nem duas vezes, que ele largou tudo para correr atrás de um rabo de saia sem se importar até com certos riscos que estava correndo, por causa de algum marido ou namorado traído pela amante de momento. Mauro sumia de repente, não dizia onde estava e até no trabalho não aparecia para evitar ser encontrado. Ele era funcionário civil do Ministério da Marinha e por diversas vezes foi ameaçado de perder o emprego por suas faltas injustificáveis.

Jadyr chorava, se lamentava, adoecia, mas não largava as suas crianças ainda pequenas. Sem o sustento do marido, a mulher passou dificuldades, mas não deixou a peteca cair todas as vezes que era abandonada. Começou a lavar e passar roupas pra fora de várias freguesas que abalavam sua resistência, mas não a levavam a desistir. Mulher guerreira com adoração divina pelos filhos que, a partir de certa idade, principalmente por Othon, foi ajudada nas despesas de casa graças ao biscate de caixeiro do pequeno garoto.

E daquela vida dura de auxiliar de quitanda o ex-garoto e agora rapaz aprendiz da vida, nunca se esqueceu. Guardou suas diferenças dentro de si para um dia como aquele, colocar pra fora tudo que estava armazenado em seu peito. Jogar na cara de seu pai suas mágoas em desabafos duros, impiedosos e verdadeiros. Melhor oportunidade como aquela o rapaz não encontrou, quando se viu diante de um homem carente, triste, arrependido e indefeso, contrastando com o ar de austeridade que sempre teve no passado com a mulher e os filhos.

Mauro, a partir daquele dia, acomodou-se como pôde e preencheu mais um pequeno espaço daquele ambiente, procurando se adaptar ao dia-a-dia da família. Os irmãos de Othon receberam o pai com alegria, ao contrário de Othon e da mãe que ainda demonstraram resquícios de mágoas ainda não perdoadas. Jadyr não deixou de dar atenção a Mauro na convivência familiar, mas rejeitou qualquer aproximação mais íntima do marido.

Os dias foram correndo, o tempo passando e Othon, vencido pelo carisma do pai, começou a dar-lhe mais atenção por conta de uma tendência em comum: A LITERATURA. Os dois gostavam de ler e escrever e Othon sempre admirou o pai por gostar de se envolver com as letras. Era comum Mauro recitar poesias e sonetos de memória, além de contar histórias sobre escritores, poetas, contistas e títulos de suas obras.

E foi exatamente por esse detalhe que Othon, a partir de seu pai, conheceu um pouco da biografia do escritor e jornalista italiano Dino Segrè, também conhecido pelo pseudônimo de Pitigrilli (1893/1975), que tecia comentários ácidos e humorísticos sobre a sociedade e costumes da época. Pitigrilli criava personagens na luta para se libertar de seus universos vazios e chegou a afirmar que adotou o seu pseudônimo porque gostava de "colocar os pingos nos ii". Algumas de suas obras, tais como "O Cinto da Castidade", "Ultraje ao Pudor", "Cocaína" e "A Virgem de 18 Quilates" retratam muito bem a sua tendência.

Mauro também não cansava de elogiar o livro "O Retrato de Dorian Gray" do escritor irlandês Oscar Wilde (1854/1900), único romance do autor que foi considerado uma das mais importantes obras da literatura inglesa. Wilde também escreveu novelas, poesias, contos infantis e dramas, tendo sido considerado um mestre em criar frases irônicas e sarcásticas. O romance foi considerado indecente e bastante censurado na época por ofender a sensibilidade moral dos críticos literários britânicos, com alguns acusando o autor de violar as leis que protegiam a moralidade pública. Mesmo assim, Wilde não deixou de defender agressivamente o seu romance através de correspondências com a imprensa britânica.

Outra obra conhecidíssima, muito parecida com um livro para crianças, Mauro deu de presente ao filho. "O Pequeno Príncipe" do conde Antoine de Saint-Exupéry (1900/1944), escritor, ilustrador e piloto francês foi lançado um ano antes da sua morte. A obra é considerada até os dias atuais como um verdadeiro clássico da literatura universal, tendo sido escrita e ilustrada pelo próprio autor durante a segunda guerra mundial. "O Pequeno Príncipe" é o livro mais vendido no mundo, foi editado mais de quinhentas vezes e é uma história que tem a capacidade de emocionar e envolver leitores das mais variadas idades.

"Meu Pé de Laranja Lima", de José Mauro Vasconcelos (1920/1984), escritor brasileiro nascido em Natal/RN, de tanto ser comentado por seu pai, fez com que Othon comprasse o livro e lesse-o totalmente em voz alta para o seu genitor. É uma obra para quem não gosta de ler porque pega leitores com aversão às letras se emocionando e se apaixonando com as verdades e agruras do menino Zezé.

Outros autores como o escritor, ativista e periodista colombiano José Maria Vargas Vila (1860/1933), Aluísio Azevedo (1857/1913), o maior representante do naturalismo brasileiro com suas principais obras "O Cortiço" e "O Mulato", José de Alencar, Machado de Assis, além de outros, também eram constantemente comentados por Mauro em suas conversas amigáveis com o filho.

Ficou claro, então, que os dois passaram a ficar mais chegados por causa da literatura. A experiência de Mauro, reconhecida por Othon, levou-o a submeter à apreciação do pai, alguns textos de sua autoria que havia escrito em algum momento de inspiração. Mauro, que não era um poeta na acepção da palavra porque não escrevia poemas, mas que adorava autores de rimas e versos ficou de queixo caído quando começou a ler alguns poemas que o filho lhe mostrara. E entre algumas correções e comentários que o pai observava para Othon, o velho guardava para si o orgulho que estava sentindo pelo filho. E dizia: - Você meu filho, tem boas ideias, escreve fácil e desenvolve muito bem seus pensamentos. Precisa se dedicar mais a esta bela tendência.

- Que nada pai - devolveu o filho - escrevo apenas para me distrair ou ajudar algum amigo que tem dificuldades. Já escrevi muito para elogiar, parabenizar ou tentar ganhar o amor de alguém. Não tive o cuidado de copiar ou guardar nada do que criei.

- Mas a partir de agora, você vai guardar tudo aqui. Determinou Mauro entregando para Othon, um caderno em branco que ele foi buscar em seus pertences. E continuou: - Quero ver todas essas folhas preenchidas por suas letras, com suas ideias, com poesias, prosas etc. Preserve-o com cuidado e faça dele o seu arquivo secreto.

No entanto, enquanto pai e filho mostravam-se cada vez mais aconchegados, Mauro guardava dentro de si a mágoa de, apesar do tempo decorrido, não ter conseguido reconquistar Jadyr. E a sua insistência para que ela cedesse às suas investidas, começaram a deixar os dois bastante incomodados. Jadyr por não querer mais a aproximação por absoluta falta de amor pelo marido e Mauro, homem austero e machista, por se ver rejeitado pela mulher. Em vista disso, não demorou que as discussões e brigas entre os dois voltassem a acontecer, sempre sem a presença de Othon. A mãe do rapaz ainda conseguiu suportar em silêncio por algum tempo as brigas com o marido, até chegar ao ponto de ofensas insuportáveis.

E foi por conta dessas discussões, que passaram a ser mais corriqueiras após seis meses do retorno do pai, que Othon, após ouvir as reclamações da mãe, resolveu tomar uma decisão que ele não queria nem esperava. O rapaz já estava acostumado com a presença e as conversas do pai, que demonstrava altíssimo conhecimento sobre diversos assuntos e isso o conquistou. Mas quando a mãe lhe intimou com o "ou ele ou eu", Othon não viu outra saída. Esperou o velho chegar tarde da noite e com lágrimas nos olhos sentenciou: - Aqui está meu pai, a sua mala e alguns embrulhos com as suas coisas. A partir de hoje você não faz mais parte desta casa.

- Como não faço! Moro aqui e aqui vou ficar! Que história é essa Othon? Rebelou-se o pai.

- O final dessa história você já sabia desde o dia que aqui entrou. Eu lhe avisei que não queria problemas com a minha mãe. Justificou o filho.

- Então é isso? Além de me rejeitar ela foi fazer queixas para o filhinho querido? Ironizou o pai.

- Não só fez queixas, confirmou Othon, - como colocou a faca no meu peito exigindo a sua saída. Você não tem jeito mesmo, hein! Bastou pouco tempo para voltar com as brigas e discussões.

- É que eu não sou nenhum palhaço da sua mãe. Nunca aceitou a minha volta e me rejeita o tempo todo, O que ela pensa o que sou? Revoltou-se o pai.

- É que os tempos agora são outros meu pai. A mãe não é mais aquela mulher boba e submissa que você conheceu. Ela tem as rotinas dela e temos que respeitar. Tentou defendê-la o rapaz.

- Ela deve é estar com outro homem, isso sim! Indignou-se Mauro continuando: - Não estou aqui para ser desrespeitado ou ser alvo de chacotas.

- Se ela está com outro homem eu não sei, porque nunca vi. Mas se estivesse, ela faria muito bem. Devolveu Othon com opinião própria.

- Mas o que é isso? Não estou acreditando no que estou ouvindo! Então você acha normal a sua mãe se deitar com outros homens? Que história é essa? Revoltou-se o pai.

- Olha aqui meu pai, não passe para o plural o substantivo. A minha mãe não é nenhuma mulher de rua para andar atrás de homens. Respeite-a e a mim também. Rebateu o filho.

- Como você quer que o respeite depois de suas palavras? Como você pode achar normal um absurdo desses? E eu, como fico nessa situação, hein! Sou o chefe da casa e não sou nenhum imbecil! Irritou-se de vez o velho.

- Chefe da casa que não deu o seu devido respeito várias vezes abandonando a família. E já falei pra você que o chefe desta casa sou eu. E é por isso que estou lhe mandando embora. Determinou o filho com autoridade.

- Não sei onde estou que não lhe dou umas palmadas. Você é um rapazola metido a besta e já pensa que é homem. Ainda tem que comer muito feijão para me enfrentar. Ameaçou o velho.

- O feijão que vou comer será às minhas custas, porque esse caroço preto você deixou de colocar na nossa mesa há muito tempo. E não venha me agredir porque você receberá de volta. Se isso acontecer, acabará de vez o respeito que ainda tenho por você. Portanto, acho melhor você sair e não voltar mais aqui. Rebateu com determinação o filho, finalizando antes de entrar e bater a porta na cara do pai: - A nossa conversa já terminou e não quero mais assunto. Chega!

A confusão foi presenciada pelos irmãos de Othon que ainda tentaram interferir para apaziguar os ânimos. Como a decisão do primogênito foi influenciada pelas reclamações de Jadyr, os irmãos chegaram a pedir à mãe, sem sucesso, uma trégua nos aborrecimentos que evitasse a saída do pai. Mauro ainda ficou um bom tempo na varandinha da casa e só foi embora quando o dia estava amanhecendo. Saiu sem se despedir de ninguém e sem indicar o seu destino como sempre fez. E a vida continuou normalmente para aquela família como nada tivesse acontecido.

Mas Othon ainda teve uma surpresa alguns anos depois... Ao remexer no fundo de alguma gaveta pouco visitada, Jadyr encontrou uma carta de Mauro dirigida exclusivamente para Othon que dizia o seguinte:

"Othon,

No outro dia entrei aqui nesta casa após várias tentativas frustradas. Sei que foi difícil convencer a sua mãe, mas você demonstrou capacidade para virar o jogo. Não estou sendo bem recebido por ela e até entendo a sua distância. Foram tantos anos de erros e irresponsabilidades que agora estão dificultando os acertos. Não sei se vou conseguir conquistá-la de novo, mas também tenho os meus motivos e sentimentos que devo preservar comigo. Não cabe aqui expor os motivos que me levaram para outros caminhos. É coisa íntima entre marido e mulher que vou guardar para sempre como faz um bom cavalheiro.

O desprezo da sua mãe já está chegando ao limite máximo e não sei mais o que fazer. Tenho amor próprio e estou a ponto de estourar. E sei muito bem o que pode acontecer se a situação chegar a um ponto insustentável. Vou continuar tentando amenizar o clima, apesar de não ver nenhum recuo da parte dela. Não tenho certeza se ela ainda vai me perdoar algum dia.

Não sei quando esta carta chegará às suas mãos e talvez nem chegue. Não tenho certeza disso, mas se chegar, agora, neste momento, você talvez venha a entender as razões do seu pai. Mas se não entender, eu quero que você saiba que:

- se você deixou de me procurar enquanto eu estive fora;

- se você assumiu a direção da casa na minha ausência;

- se você sempre procurou os estudos apesar das dificuldades;

- se você enfrentou a vida desde cedo com trabalho duro e injusto para um menino;

- se você brigou e discutiu comigo várias vezes em defesa das suas opiniões;

- e se você se interessou pela literatura, pelas escritas e pelas leituras, eu só posso lhe dizer uma coisa: - Você é assim, pensa assim e toma certas atitudes, apenas por um motivo: "VOCÊ É MEU FILHO".

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AGRADEÇO A SUA VISITA E COMENTÁRIOS.

Abraços, saúde e Feliz Ano Novo para você.

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Enviado por POETA OLAVO em 29/12/2015
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