NOITE DOS FANTASMAS

Noite de Natal. Na favela explodem fogos por todos os lados, carros parados e sistemas de som dentro dos bares disputam entre si um grande concurso de mau gosto, cada um tentando tocar os piores funks ou forrós no volume mais alto possível. Jovens passam se exibindo em motos à todo instante na avenida principal e as meninas desfilam de um lado para o outro, em um enorme concurso de quem consegue usar menos pano para se vestir. Homens de trinta e quarenta em frente de suas casas ou de bares mais tradicionais se encharcam de cerveja, temperando de vez em quando com uma "quente". Várias casas com famílias reunidas e com suas portas abertas para poderem ter mais espaço. Nestas, invariavelmente estão dois ou três jovens no portão com uma lata na mão. Às vezes uma turminha se afasta para atrás de um poste ou uma parede e voltam com os olhos estalados e com os narizes escorrendo, com certeza vão esticar a noite até o seu máximo e vão arrumar alguma confusão antes de finalmente voltarem para casa. Ele vai andando, simplesmente passeando por aquele ambiente que conhece tão bem, deseja um feliz natal aqui outro lá, mas não troca mais do que uma dúzia de palavras em lugar nenhum. Nunca gostou desta data. Família bagunçada, as festas sempre tinham um ar de melancolia, que um ou outro convidado tentava espantar sem sucesso. Havia sempre muita comida que acabava sobrando até o Ano Novo. Este, sempre adorou. Desde os 14 anos metia uma mochila nas costas e saia pelo mundo. Seu avô ficava apavorado, mesmo porque ele já chegou a voltar só depois do Carnaval. Bem depois...

Seu avô era o pilar daquele bando de desajustados, Um advogado respeitável que construiu para si uma família muito louca. Um malandro órfão como filho, uma retirante orgulhosa que fugiu de seus pais como nora, dois netos tão diferentes como água e óleo. Uma perua petista radical super gente boa e solitária, a antítese de sua figura e sua melhor amiga, e a tia, uma amiga de sua mãe, maranhense mãe solteira porreta e sempre em dificuldades, que fazia da chácara onde moravam seu segundo lar. Muito anos depois, logo que seu avô faleceu, pensando nela e em sua mãe, percebeu como a caridade pode ser um jugo pesado para aqueles que têm sentido de honra. Que era impossível seu velhinho, com seu profundo conhecimento da alma humana no que ela tinha de melhor e pior, não soubesse disso.

Ele lhe ensinou a gostar de teatro, de bom cinema, de literatura, de cultura. Mas é ali que ele sente que mais honra sua memoria. Chafurdando na lama das paixões e misérias humanas. Como seus olhos brilhavam quando aparecia algum caso escabroso, cheio de detalhes tenebrosos ou inacreditáveis! Seu avô havia morrido há muitos anos, assim como sua amiga. Seu pai se mudou para longe em uma paranoia de perseguição que veio depois da cadeia e com a idade. Seu irmão estava preso e lá ficaria por muito tempo. Lhe mandava um pacote de cigarro por mês através da sua mãe. Esta era a freqüência que a via também. Sua tia e prima só pelo Facebook.

"Morrer era apenas não ser mais visto". Quanta sabedoria esta contida nesta frase! No folclore Norte-americano existia o Halloween, a noite em que os fantasmas e bruxas podiam circular pelo nosso mundo. Eles estão errados, isto acontece na noite da véspera de Natal. Andava pensando em seu irmão privado desse direito e na comunidade que estava lentamente sendo demolida com a construção de comércios que margeavam a grande avenida que fora construída ao largo dela. Deu um sorriso amargo ao pensar na amiga de seu avô, com seu jeito espalhafatoso, tentando organizar os moradores à protestar. O cheiro e o gosto da farofa doce que seu velhinho fazia para ceia não descolavam das suas narinas.

Seu Zé Burro estava em frente da sua casa de cócoras, com o olhar perdido no horizonte. Não respondeu ao cumprimento de Feliz Natal, então ele se aproximou:

-"Ah, você! Desculpe, é que eu tava distraído. Feliz Natal!"

Seus olhos estavam mareados. Sentou-se ao lado dele, acendeu um cigarro e este desandou a falar. Das pessoas que deixou para trás, de como queria ter podido juntar um dinheiro para ir para a Bahia, onde sua mãe ainda está viva e ainda têm alguns irmãos. As lágrimas desciam devagar e solenes naquele rosto endurecido de migrante orgulhoso. Ele se sentia um médium, era apenas um canal para ele conversar com seus fantasmas. Ficou ali por cerca de uma hora e meia. Finalmente Seu Zé pediu licença e entrou para dentro da sua casa e ele finalmente decidiu parar de perambular, comprou seus 100 reais de crack, seu maço de cigarro e seus dois corotes e foi para casa. Sem que ele percebesse o cheiro de farofa doce sumiu. Passou a noite se drogando, tentando afastar da sua mente suas assombrações. De manhã, virado, foi para seu trabalho como técnico de enfermagem no P.S. do bairro. Estavam preparando o corpo do Zé Burro para o SVO. Suicídio. Facada no coração. Os fantasmas podiam ser cruéis...

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 28/12/2015
Reeditado em 16/08/2024
Código do texto: T5493573
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