UM TANGO PARA TRÊS
É paixão nacional. Possui a cara do País, à espera da vez, há mais de quinhentos anos. Plantada durante o Império, brotou nos chafarizes baianos. O bom, o raro, ou essencial necessita da certificação de uma fila que envolva o quarteirão, produza compartilhamento nas redes sociais e fisgue a atenção da mídia. Não podem faltar as conversas temáticas. Os homens se ocupando com mulher, futebol e política, enquanto elas esmiúçam as questões domésticas, relacionamentos e saúde. Em hipótese alguma, esquecer o bafafá.
A polícia mantém os rádios sintonizados na frequência da gastronomia. Na velocidade da luz, chega para amaciar lombos a golpes de cassetetes, temperá-los a gás de pimenta e defumá-los com bombas de efeito moral. As câmeras não perdem o detalhe, o povo, a oportunidade de aparecer nos telejornais. Conheço bem o que me espera.
Do início, caminho ao longo do dorso, até chegar à cauda. A serpente engole metade da quadra.
--- Água geladinha!
--- Cachorro quente, vai aí freguesa?
Cumprimento com bom dia, duas senhoras, últimas da fila. Conversam com entusiasmo. Entendo a cordialidade do sorriso, convite ao meu ingresso no bate-papo. Aplico protetor solar nos braços e rosto, abro a sombrinha. Os acenos do sol me lembram às férias na praia. O Rio de Janeiro continua lindo. Na bolsa, celular. Na ponta da língua, texto para os repórteres. Quero ficar bem no filme.
--- Amiga, antes o povo casava e a morte separava.
--- Hoje é rodízio, né?
--- Bacanal! Homem com homem, mulher com mulher e até em grupo.
--- Desembestou, ninguém quer mais feijão com arroz.
--- Onde já se viu?
--- Fale não, podem pensar que é preconceito.
--- Tenho não, cada um faz o que quer.
--- Saio até nas passeatas, um festão.
--- Dizem que todo amor vale a pena.
--- Querem ter filhos, pode?
--- Não, mas adotam.
--- Às vezes, arranjam barriga de aluguel pra um deles encher.
--- Coitadas das crianças!
--- Elas com ciúme vão ao banco de esperma.
--- Filho sem pai!
--- Querem até casar na igreja.
--- Santo Papa!
--- Santo nada. Anda pedindo desculpas pelos pedófilos.
--- Meu Deus onde vamos parar?
Olham para mim. O que antes parecia convite, agora é certeza de intimação. Sou marisco açoitado pelas águas contra o rochedo. Minha concha se rompe.
--- O assunto é delicado, não é? Sou Beatriz, e vocês?
Meu olhar não alcança o final, a cobra virou a esquina e invadiu outro horizonte. O calor dissolve a multidão em suor. Zumbido de buzinas, ronco de motores, gritos de ambulantes e latidos de animais de rua golpeiam os tímpanos.
--- Sou Rosália, os amigos me tratam por Rosa.
--- Eu Iranilda, me conhecem por Nilda.
--- Vocês precisam reavaliar a opinião.
--- Mas, tá certo isso, Beatriz?
Um carro para ao lado, rente ao meio fio. O motorista baixa o vidro. Dois pares de olhos luzem e me premiam o dia. Ana Lígia salta do banco do carona, contorna o veículo e me estreita a cintura com o braço direito, enquanto segura e eleva minha mão, à altura dos ombros. Unimos as faces e repouso a mão esquerda sobre seu ombro. A disposição dos corpos lembraria aos amantes do tango portenho, o abraço milongueiro.
Bruno Vitor, alheio à desordem do trânsito, deposita a mão sobre a nossa e me envolve a cintura. Despertadas pela emoção, as lembranças emergem e me transportam ao período de férias na Região dos Lagos. Hoje, além de corpos bronzeados, conheço os efeitos do sol e mar sobre seres humanos.
Estou prensada entre os dois. O ar quente da respiração dele me aquece o pescoço e arrepia os pelos. Seu tórax pulsa sobre minhas costas. Os músculos do braço me aprisionam, não pela força, porque não quero resistir. Fuga, não há como. Lígia me retém com olhos azuis, lábios vermelhos, pele dourada, abraço apertado, seios firmes que resistem aos meus e roçar de coxas vigorosas, separadas por vestidos ralos. Somos três criaturas abençoadas no esplendor dos trinta anos.
Desfeito o abraço, trocamos beijos nas faces. Somos atores estreantes na arena de piso de concreto, onde a plateia reparte olhos e ouvidos entre si e o palco.
Ah! Se soubessem, que o tango imita a vida. Que não é exclusivo o casal no bailar, ou viver. Que a última transferência de peso, assim como, o tempo guiado ao passado, são vagões descarrilados do infinito comboio. Que a milonga conduz dançarinos, como a evolução humana impele a sociedade a novas experiências e conexões. Talvez, não pratiquem a dança e das amarras da vida, sejam reféns do preconceito.
Bruno retorna ao volante. Lígia me segura a mão, balbucia ao meu ouvido e conduz para fora da fila em direção ao carro. Não tenho forças para recusas.
Publicado na antologia Todo Amor Vale a Pena/Bagaço
A polícia mantém os rádios sintonizados na frequência da gastronomia. Na velocidade da luz, chega para amaciar lombos a golpes de cassetetes, temperá-los a gás de pimenta e defumá-los com bombas de efeito moral. As câmeras não perdem o detalhe, o povo, a oportunidade de aparecer nos telejornais. Conheço bem o que me espera.
Do início, caminho ao longo do dorso, até chegar à cauda. A serpente engole metade da quadra.
--- Água geladinha!
--- Cachorro quente, vai aí freguesa?
Cumprimento com bom dia, duas senhoras, últimas da fila. Conversam com entusiasmo. Entendo a cordialidade do sorriso, convite ao meu ingresso no bate-papo. Aplico protetor solar nos braços e rosto, abro a sombrinha. Os acenos do sol me lembram às férias na praia. O Rio de Janeiro continua lindo. Na bolsa, celular. Na ponta da língua, texto para os repórteres. Quero ficar bem no filme.
--- Amiga, antes o povo casava e a morte separava.
--- Hoje é rodízio, né?
--- Bacanal! Homem com homem, mulher com mulher e até em grupo.
--- Desembestou, ninguém quer mais feijão com arroz.
--- Onde já se viu?
--- Fale não, podem pensar que é preconceito.
--- Tenho não, cada um faz o que quer.
--- Saio até nas passeatas, um festão.
--- Dizem que todo amor vale a pena.
--- Querem ter filhos, pode?
--- Não, mas adotam.
--- Às vezes, arranjam barriga de aluguel pra um deles encher.
--- Coitadas das crianças!
--- Elas com ciúme vão ao banco de esperma.
--- Filho sem pai!
--- Querem até casar na igreja.
--- Santo Papa!
--- Santo nada. Anda pedindo desculpas pelos pedófilos.
--- Meu Deus onde vamos parar?
Olham para mim. O que antes parecia convite, agora é certeza de intimação. Sou marisco açoitado pelas águas contra o rochedo. Minha concha se rompe.
--- O assunto é delicado, não é? Sou Beatriz, e vocês?
Meu olhar não alcança o final, a cobra virou a esquina e invadiu outro horizonte. O calor dissolve a multidão em suor. Zumbido de buzinas, ronco de motores, gritos de ambulantes e latidos de animais de rua golpeiam os tímpanos.
--- Sou Rosália, os amigos me tratam por Rosa.
--- Eu Iranilda, me conhecem por Nilda.
--- Vocês precisam reavaliar a opinião.
--- Mas, tá certo isso, Beatriz?
Um carro para ao lado, rente ao meio fio. O motorista baixa o vidro. Dois pares de olhos luzem e me premiam o dia. Ana Lígia salta do banco do carona, contorna o veículo e me estreita a cintura com o braço direito, enquanto segura e eleva minha mão, à altura dos ombros. Unimos as faces e repouso a mão esquerda sobre seu ombro. A disposição dos corpos lembraria aos amantes do tango portenho, o abraço milongueiro.
Bruno Vitor, alheio à desordem do trânsito, deposita a mão sobre a nossa e me envolve a cintura. Despertadas pela emoção, as lembranças emergem e me transportam ao período de férias na Região dos Lagos. Hoje, além de corpos bronzeados, conheço os efeitos do sol e mar sobre seres humanos.
Estou prensada entre os dois. O ar quente da respiração dele me aquece o pescoço e arrepia os pelos. Seu tórax pulsa sobre minhas costas. Os músculos do braço me aprisionam, não pela força, porque não quero resistir. Fuga, não há como. Lígia me retém com olhos azuis, lábios vermelhos, pele dourada, abraço apertado, seios firmes que resistem aos meus e roçar de coxas vigorosas, separadas por vestidos ralos. Somos três criaturas abençoadas no esplendor dos trinta anos.
Desfeito o abraço, trocamos beijos nas faces. Somos atores estreantes na arena de piso de concreto, onde a plateia reparte olhos e ouvidos entre si e o palco.
Ah! Se soubessem, que o tango imita a vida. Que não é exclusivo o casal no bailar, ou viver. Que a última transferência de peso, assim como, o tempo guiado ao passado, são vagões descarrilados do infinito comboio. Que a milonga conduz dançarinos, como a evolução humana impele a sociedade a novas experiências e conexões. Talvez, não pratiquem a dança e das amarras da vida, sejam reféns do preconceito.
Bruno retorna ao volante. Lígia me segura a mão, balbucia ao meu ouvido e conduz para fora da fila em direção ao carro. Não tenho forças para recusas.
Publicado na antologia Todo Amor Vale a Pena/Bagaço