SÓ MAIS UMA ESTORIA
Encontrava-se esmagada no banco lateral do trem por dois peões de obra enormes, mas apesar do incômodo estava sentada, e por isso feliz. Na maioria das vezes vinha de pé, esmagada como uma sardinha na lata. Isso quando não vinha um depravado qualquer se aproveitar do aperto para ficar se esfregando!
Não, hoje estava feliz. Ontem havia sido o dia de trabalhar na casa do Drº Marcelo, em Moema. Ela era conhecida por ser caprichosa, mas no apartamento dava um talento todo especial. Afinal foi ele que conseguiu, como neurologista do Hospital P... , as cirurgias que melhoraram os ataques epiléticos do seu filho. Fazia de tudo para esquecer, mas os flashes de lembranças iluminavam sua consciência o tempo todo, o coitado passou 3 meses na UTI por causa deles, a cabeça dele ficou aberta durante treze horas. Hoje ele têm placa de acrílico no crânio e por isso é careca e sofre apenas de umas crises de ausência. Mas se comparado ao que era antes melhorou 1000%!
Uma turma de adolescentes de pé em frente dela conversavam naquela alegria histérica e prepotente que parece ser a marca dessa geração. Uma se gabava o tempo todo do seu namorado gerente de biqueira. O pano da roupa que as cinco usavam não dava para fazer um vestido de festa. Sem rancor, inveja ou remorso olhava para elas lembrando de quando era igualzinha. De como se juntou com um traficantezinho, ficando grávida com 14 anos e saindo de casa para morar com ele. Olhando para trás, pesando os prós e os contras, a verdade é que foi feliz. Qualquer coisa era melhor do que continuar morando com sua mãe, uma evangélica daquelas linha-dura, as brigas praticamente diárias. A vida com ele não foi bem o paraíso, mas era melhor do que o inferno onde havia crescido. Mesmo nos dois anos que ele esteve preso e ela teve que ir visitá-lo, passando por tudo quanto foi tipo de humilhação. A apreensão cada vez que ele saia para "trabalhar", os chifres dela que iam até o céu. Mas ele a honrava como esposa e era um bom pai, e mais importante de tudo; ela o amava, na hora da verdade, ele deu todo apoio possível, que foi quando o filho deles começou a ter as crises.
Mas o crime um dia cobrou seu preço.Como se tivesse acontecido ontem, lembrou dele entrando em casa apavorado. Havia errado feio com a Facção e eles estavam vindo busca-lo para o "julgamento". Ele, em desespero, deu um tiro na cabeça bem no meio da sala. Ela e o filho, na época com 8 anos, viram tudo. Quase enlouqueceu,não fosse o apoio que recebeu da sogra e sua criança para cuidar teria simplesmente desmoronado. Por mais estranho que possa parecer a doença do filho também a ajudou. A partir do ocorrido, os ataques se tornaram paulatinamente tão frequentes e tão violentos que ele teve que ser internado. Ele passou indo e voltando por quase três anos até ser descoberto pelo Drº Marcelo, que finalmente conseguiu para ele uma internação em um hospital de primeira linha.
-"Próxima estação: Suzano".
Era sua parada, lhe aguardava mais meia hora de ônibus Trabalhava como diarista na casa de vários médicos, mais tinha que contratar alguém para ficar em tempo integral em casa por causa das crises de ausências do seu filho. Se ele simplesmente ficasse parado, mas não. Continuava a fazer as coisas, só que era outra pessoa e quando voltava não lembrava de nada. Elas nunca duravam mais que três à sete minutos, mas a enchiam de preocupação. A última e pior foi quando um imbecil de um moleque da sala dele arrancou sua peruca. Ele diz que não se lembra de nada, mas a coisa foi feia! O pirralho teve o nariz esmagado e o professor que tentou separar levou uma caneta na garganta que quase o matou. O que salvou de virar um problema judicial foi os inúmeros laudos médicos. Agora ela tem que pagar supletivo para ele e para a menina que o acompanha.
Essa menina lhe preocupava. Tinha vinte cinco anos, uma filha de dez, era feia de rosto mas não de corpo. Era uma típica garota da comunidade e a função dela era estar sempre com seu filho. Mas acabava sendo uma faz tudo: doméstica, cozinheira, companhia, enfermeira, e o que mais precisasse. Até hoje não tinha um a para falar dela, nem ele nunca reclamara de nada, mas ele tinha 14 anos e essa é uma idade perigosa. Bem, era melhor que não desse nenhuma merda! O salário e as facilidades que ela dava, a moça não ia achar em lugar nenhum. Mas, pensando bem, o garoto sofreu tanto e é tão retraído que talvez não fosse má ideia dar um adicional à ela para uma educação especial.
Esse pensamento a divertiu, nesse momento o ônibus chegou. Não conseguiu lugar sentada, mas tudo bem, a viagem era curta. Seus pensamentos voltaram para o seu filho, as cirurgias no cérebro não deixaram só as crises de ausência e a calvície precoce como sequelas. O Drº Marcelo tentou explicar para ela. Ao que parece os ataques epiléticos que ele tinha vinham de várias partes que se descontrolavam e que precisavam ser removidas. Mas é a mente que domina tudo e que seria impossível fazer isso sem sequelas. O rosto dele na parte esquerda é levemente caído, como se tivesse sofrido um derrame. Ele arrasta um pouco a perna direita. Tem mais dificuldade com matemática do que antes.
Ele não assimilou muito bem a morte da vó há dois meses atrás. Ou assimilou muito bem, o que a assustava ainda mais. Quando seu namorado morreu eles foram viver com ela. Acabaram ficando muito apegados, só não continuou morando com ela porque seu ramo era o tráfico, como o do filho, assim que começou a fazer nome como diarista entre os médicos, tratou de arranjar um cantinho, tão gente boa era a sogra que compreendeu isso sem problemas, até ajudou na compra dos móveis. A uns dois anos começou a ter uns esquecimentos, umas falas estranhas. Quando foi ao médico acabou sendo diagnosticada com alzheimer. Fora de todas as expectativas um mês depois ela organizou uma enorme festa onde ela tinha convidado o mundo todo. Dois dias depois se matou com um tiro no coração. Aquilo lhe deixou arrasada, mas seu filho, que ela imaginou que sofreria muito mais, ficou absolutamente tranquilo. Não foi só esse fato, sempre que pedia que ele tomasse cuidado para fazer alguma coisa, ouvia a mesma frase:-"Não se preocupe mãe, eu não vou deixar a senhora sofrer de novo". O último feriado que tinha ficado em casa tinha sido o da Consciência Negra. Conversando ele declarou que não entendia porque tanta "frescura" sobre o assunto. Ela tentou argumentar que isso se devia ao fato de eles terem sido escravos e coisa tal. A sua resposta a deixou atônita:-"Eles eram escravos porque quiseram! Platão justificava a escravidão pelo simples fato que o homem que era escravo merecia essa condição humilhante porque a preferiu ao invés da morte!".
O ônibus chegou no seu ponto, que era de frente à sua casa. Encontrou seu filho lendo e a garota ajudando a filha dela na lição. Ela arrumou suas coisas rapidinho e já se preparou para sair:
-"Tchau, até semana que vêm. Têm que dar parabéns para o seu filho. Foi ele que fez o jantar e fez questão de sair para comprar goiaba para fazer suco para você. Diz que é o seu preferido".
Saiu voando pela porta com a filha. Nisso seu filho preparou seu prato e um copo do suco. Normalmente tomava banho primeiro, mas jantou com ele para não fazer desfeita. O suco estava delicioso, mas tinha um amarguinho, como se tivesse sido preparado com adoçante. Mas não perguntou nada. Depois disso foi tomar banho. Sentiu de repente um sono absurdo. Saiu rápido e antes que não tivesse mais condições, separou as medicações do filho. No fundo da consciência percebeu que o frasco de clonazepan estava praticamente vazio.
Sábado a tarde, dona de casa em algum lugar da Grande São Paulo liga a televisão no seu telejornal favorito.
-"Corta para mim! Corta para mim! Coloca na tela! Cadê o exclusivo? Têm que por o exclusivo! Dá trabalho para fazer! Exclusivo! No próximo bloco: Filho degola a própria mãe e depois se mata com facada no coração!".