A construção do poema
A construção do poema
Sentou-se à frente do computador disposto a escrever um novo poema. O mais belo que pudesse ser por ele escrito até então. Sua amiga de confidências literárias havia perguntado sobre um novo conto, um novo poema e isso o havia estimulado a construí-lo. O relógio marcava dois minutos depois da zero hora. Foi assim que viu no mostrador, ao olhar o que estava em seu pulso. O sono nem de longe chegava e o silêncio lhe fazia companhia. Não estava só: ali estavam o seu PC e o desejo de escrever um poema.
Sobre o que escreveria? Sobre o amor, a solidão, a vida? Homenagearia algum amigo? Ficou a contemplar a janela entreaberta de onde vinha a brisa da noite, na esperança de que por ela também entrasse alguma inspiração, uma vez que as portas da sua mente e alma estavam todas fechadas.
A tela do computador escureceu sem que nada nela tivesse sido escrito. Teria quebrado? Não. Lembrou-se que era o sistema de segurança. Bastou um simples clicar para que a clara tela retornasse, nua como estava antes. Como desejou que assim fosse com ele: um simples clique e toda a inspiração brotasse, branca como as nuvens de uma ensolarada manhã, passeando e desenhando imagens nem sempre identificadas. Sabia que não era assim.
Que fazer? Buscar no mais profundo recôndito alguma lembrança? Pedir aos céus que o ajudassem? Quem sabe algum amor não correspondido ou aquela angústia ainda não resolvida pudessem socorrê-lo? Ao seu lado um livro de contos de Bartyra. Pensou em reler algum, mas desistiu quando se lembrou de outros por ela enviados, ainda inéditos, dos quais tanto tinha gostado. Visitou alguns. Voltou a deles gostar, mas nada inspirou o poema tão sonhado.
Estava ali a resposta à sua inquietação: retornar aos sonhos. Mas quais? Não se lembrava de ter sonhado a noite passada e nem outras noites passadas. Uma canção lhe veio à mente. Baixinho começou a cantarolá-la, mas ela parecia não ter sentido, como se a melodia estivesse inacabada, nunca tendo sido escrita em uma partitura qualquer, na qual os sustenidos e os bemóis não se faziam presentes, nem o compositor existia.
Levantou-se, tomou um pouco d’água e foi até a varanda. Contemplou a avenida vazia de transeuntes, mas onde carros ainda se movimentavam, como se os seus condutores não soubessem para onde ir. De vez em quando um ronco mais alto de um veículo, a perturbar o silêncio que a madrugada impunha. Não desejou que as mentes dos motoristas estivessem vazias como estava a sua.
O que aconteceu com as palavras? Por que fugiram e se esconderam onde nenhum pensamento alcançava? Algum vento as teria levado para longe de sua intuição? Por que fizera isso com ele que tanto as amava? Lançou mão de um dicionário. As palavras estavam lá, mas nada revelavam. Descobriu que um poema não é um ajuntamento de frases.
Dirigiu-se até o quarto e contemplou a sua esposa dormindo profundamente, alheia à sua angústia. Não seria melhor enfiar-se também debaixo daquelas cobertas? O frio do ar- condicionado estava convidativo. Mas não, precisava escrever um poema.
Pensou em telefonar para alguém. Àquela hora, quem o atenderia? Talvez o CVV e os seus denodados voluntários? Não, seria demais, mesmo sendo um caso grave, não era de vida ou morte. Não se suicidaria, mesmo que o poema não escrito o instigasse a fazê-lo.
Recordou-se de ter lido em algum lugar que isso acontece com frequência com quem se atreve a escrever poesia. Mas não com ele. Não aceitava isso, de jeito nenhum. Como pode alguém viver um dia sem escrever um poema se a vida é poesia?
Nem percebeu que o relógio já marcava 3 horas e 5 minutos. Não fazia nenhuma diferença. A escuridão lá fora, era a mesma dentro dele. Já nem se lembrava de quantas vezes a tela do computador tinha ficado escura e de quantas vezes clicara para que tornasse a ficar clara.
Nem o poema, nem o conto, nem a canção surgiram. Mas o que queria mesmo era o poema. Descobriu que havia dias em que nada deve ser escrito e o que restaria fazer era ler o que os outros escreveram e contentar-se com isso. No dia seguinte a tela do seu computador certamente estaria disponível. Quem sabe ele também?
Digitou uma frase para não se retirar sem nada ter escrito: “sou um inútil”. Não chegou a grava-la. No dia seguinte teria desaparecido ou - quem sabe? - na tela estivesse um poema que não se sabia de onde viera nem quem o teria escrito.